domingo, agosto 31, 2003

Adeus, Agosto: O sol a queimar o corpo, um livro em cima do sofá, os pés descalços, a sentir a frescura da mármore, aquela sensação doce de que estamos de férias e vivemos cada minuto com a mesma intensidade do primeiro. Agosto despede-se e com ele desaparecem os dias longos, mais amarelos pelo sol, as avenidas sem trânsito, onde o tempo pára e os movimentos estalam no silêncio da cidade. A areia deixa de se levantar na praia, por causa da nortada, fica na boca uma réstia de gelado. O céu azul, a música no carro, o corpo a transpirar. A brisa da noite é como um copo de água.

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  • Sim, um surdo pode ouvir:... e um cego ver. É verdade. Não se trata de nenhum avanço tecnológico ou de uma técnica inovadora. Enquanto os dedos deslizavam pelo comando da televisão, encontrei algo que me fascinou desde o início: um programa colocava um surdo no centro das atenções através de uma entrevista bastante tentadora. Uma das questões fascinou-me. Que tipo de relação tem um surdo com a música? A resposta deixou-me perplexo. Uma simbiose fantástica. O entrevistado até explicou que chegou a frequentar discotecas na sua juventude para sentir as vibrações da música; para dançar como se ouvisse a melodia. Porque sentia-a. E um cego pode ver? Esta história também me chegou através de uma entrevista. Há um senhor que vai ver boa parte dos jogos do F.C. Porto no Estádio das Antas. É cego. Diz que vê o jogo à sua maneira, porque sente-o no espírito. Sente-o no corpo. Sente-o com todas as letras. E até sabe quando uma equipa joga mal ou bem.

    PS. Cada vez mais chego à conclusão da importância do sentir nas nossas vidas. Quando se sente o mundo, todas as pessoas podem ser normais, mas também as pessoas «normais» (estas aspas são propositadas) se distinguem umas das outras pelo sentir. Acreditem, há pessoas saudáveis que não sentem nada. Não têm capacidade para isso.

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  • Sozinho no baile: Pois é. A Maria, a minha parceira de blog, parte este domingo para umas merecidas férias e deixa-me sozinho neste baile de palavras e de emoções. Logo no início prometemos que estes Remoinhos iriam desmistificar uma parte de tudo, especialmente aquilo que anda suspenso nesta vida e raramente pensamos, mas também são uma espécie de baile ao som de uma música que varia em função do momento. Tanto pode ser alegre como triste. Mas é um baile. E um baile é para ser dançado a dois. Assim tem acontecido porém, daqui para a frente, terei a responsabilidade de bailar sozinho. Em suma, a criança fica entregue ao pai. Filho, a mamã chega um dia destes. Não te preocupes. O que vale é que sei mudar as fraldas.

    PS. O Filho, a mamã chega um dia destes também é válido para os nossos leitores. Claro, só podia.

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  • sábado, agosto 30, 2003

    Um novo livro para ler: É um livro que todos devem ter lá em casa. Às vezes, sai da prateleira, vem parar às mãos, mas depressa se refugia na estante. Pode ser do peso - normalmente é pesado -, pode ser do seu aspecto algo enfadonho, é provável. Por norma, só recorremos a ele quando uma dúvida nos atravessa a escrita e as palavras ganham aquele efeito de serem um mistério, quanto à forma, ao significado e à sua composição. O dicionário de língua portuguesa é a nossa Bíblia, uma espécie de farol em noites negras e de grandes pontos de interrogação, mas nunca lhe oferecemos o devido valor. O nosso contacto é breve, reduz-se a pequenos instantes, porque chateia encontrar as palavras: as letras são minúsculas, às vezes temos de folhear mais de uma vez para chegarmos ao nosso objectivo. Mas é um exercício que vale a pena, ler o dicionário como quem lê um romance, pois só assim descobrimos aquilo que parece nunca ter existido. Sabe o que é uma salabórdia? Isso nunca irá ler neste blog...

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  • A morte está legalizada: Barrancos abriu as portas da Península Ibérica e voltou a dar expressão a um espectáculo que resulta da combinação do grotesco com o desumano. Chama-se touros de morte e o nome já diz tudo. Uma romaria de gente - não só portugueses como espanhóis - invadiu aquela vila alentejana para venerar um ritual que nem o tempo ou o mais inteligente dos homens é capaz de apagar. Desta vez a afluência de público, logo no primeiro dia, ficou aquém dos registos verificados em anos anteriores, o que já é uma espécie de vitória. Ténue, é certo, mas uma vitória. Segundo explicaram os serviços noticiosos, este será o segundo ano em que tais práticas maléficas estão completamente legalizadas. Daí resulta uma ideia que tem tanto de má como de perigosa: a morte está legalizada. Até parece que o crime compensa...

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  • sexta-feira, agosto 29, 2003

    Filho enjeitado?: Filho enjeitado, não! Longe disso...
    O meu calendário, há muito, tinha determinado que o mês de Setembro seria um mês de pausa. Férias.
    O nosso Remoinhos nasceu recentemente. Tem alguns dias, apenas.
    Nasceu de parto normal, de boa saúde, com pais extremosos e responsáveis.
    Ficará, durante curto tempo, ao cuidado de um dos seus progenitores. E que bem entregue, ele fica... nem duvidem.
    Não me ausentarei sem deixar em Remoinhos um miminho aos seus leitores, alusivo à minha cidade.
    Um soneto de Alexandre O'Neill.

    Daqui, desta Lisboa

    Daqui, desta Lisboa compassiva,
    Nápoles por suiços habitada,
    onde a tristeza vil e apagada,
    se disfarça de gente mais activa;

    daqui deste pregão de voz antiga,
    deste traquejo feroz de motoreta
    ou do outro de gente mais selecta
    que roda a quatro a nalga e a barriga;

    daqui, deste azulejo incandescente,
    da soleira de vida e piaçaba,
    da sacada suspensa no poente,
    do ramudo tristolho que se apaga;

    daqui, só paciência, amigos meus!
    Peguem lá o soneto e vão com Deus...

    «Cem Sonetos Portugueses»
    «Selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria»
    «Editor: TERRAMAR»

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  • O que é um remoinho?: Movimento de rotação em espiral; sorvedouro, voragem (in dicionário da Língua Portuguesa). Os nossos remoinhos não têm uma rotação definida nem um sentido estabelecido. São a imagem do mundo: um dia coloridos, outro cinzentos. São imagem do que fica e também do que passa. Uma hora alinhados, outra desarrumados. São palavras, pensamentos, emoções. Disto e daquilo. São a imagem do mundo, a nossa imagem do mundo. É como ler um livro e pousá-lo antes de ir dormir. Por breves instantes, vivemos aquilo que lêmos. Entre o pousar e o dormir. É esse o remoinho que vamos transmitir.

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  • A beleza também fere: Ao ver a bela Brigitte Bardot, num filme chamado Vie Privée, datado de 1961, cheguei à seguinte conclusão: a beleza também fere. Não por causa dela, que foi uma mulher encantadoramente bela, cuja formosura e lindeza tinham um misto de encanto e de rebeldia. É aquilo a que se chama uma beleza natural. Refiro-me a outra beleza. Àquela que é estupidamente perfeita, desmesuradamente perfeita, em que as linhas do rosto parecem ser desenhadas a régua e a esquadro, e o olhar, os gestos, as roupas e até as palavras parecem premeditados até ao mais ínfimo pormenor. É uma beleza tão exemplar, tão rigorosa que chega a ferir. Sou incapaz de olhar, olhos nos olhos, para uma mulher assim. Regra geral, estas mulheres são sempre desinteressantes.

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  • quinta-feira, agosto 28, 2003

    Tímida escrita: Eu não sou tímida. A vida encarregou-se de vencer, cedo, a minha timidez.
    Aqui darei os meus primeiros passos, em público, de uma escrita lúdica, inevitavelmente tímida, por agora.
    Um desafio, é certo... e que desafio!
    Porque a vida me colocou desde sempre em situações de desafio; porque enfrentar desafios é luta; porque luta é existir; porque existir é essência; porque essência é raíz; porque raíz consente expansão, aqui me lanço em Remoinhos de alvoroço.
    Bem hajas, meu muito especial amigo, César Almeida, impulsionador desta proeza.
    ... que o baile dure até às tantas...

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  • Setembro: Setembro começa a chegar. Sente-se o cheiro da terra molhada depois do bafo quente do calor. As folhas das árvores desfazem-se em gotas de água, os passáros calam-se, ouvem-se os cães a ladrar, ao longe, à medida que o fresco da atmosfera se cola num pouco de nada. A temperatura desceu. O barulho dos automóveis parece mais doce, talvez mais silencioso, enquanto o telhado das casas é como um vidro brilhante lavado pela chuva. Ouve-se o silêncio. Vê-se o céu cinzento. Pressente-se a humidade. A nossa voz perde-se em tudo, até em nós mesmos. O Outono está quase a chegar...

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  • A realidade: Enquanto almoçava, via a televisão e descobri que este país continua a ser uma terra de contrastes por muito que as tecnologias avancem em ritmo avassalador e os políticos tentem encurtar as distâncias entre o interior e o litoral. Salgueiral (creio que era assim que se chamava) é uma pequena aldeia perto de Tondela, na Beira Alta, onde a luz e a água ainda não chegaram pela mão do homem. Vive-se à custa de pequenos geradores eléctricos que asseguram o minímo e o indispensável e a água dos poços só corre em cada casa à custa de canalizações artesanais. Imaginem o que seria de nós e das nossas casas sem estes bens: água e luz. Conseguem imaginar? Há poucas semanas, Nova Iorque foi a cara e o corpo do pânico por um gigantesco corte de energia. Por aqui se percebe muita coisa.

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  • O meu primeiro post: É sempre difícil escrever o primeiro post, precisamente por ser o primeiro. E o primeiro de muita coisa. Há quem diga que a primeira vez de qualquer coisa é a mais difícil de todas. Concordo. Agora, recordo as minhas primeiras vezes de tudo e chego à conclusão que a primeira vez, por ser a primeira, é um misto de várias coisas: de suspense, de tensão, de alegria e também de medo. Este blog chama-se Remoinhos, os nossos remoinhos de palavras e de emoções. Nossos, porque será meu e da minha amiga Maria Oliveira. Prometemos remoinhos de tudo. Aqui ficará a conhecer todos os remoinhos deste mundo. Mesmo todos - não estou a exagerar. Nesta hora difícil, vou parafrasear uma frase célebre da Maria: Siga o Baile! Siga, então, o baile.

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