terça-feira, setembro 30, 2003

Boca de lacaio: Hoje estou com boca de lacaio!
Tal como nos velhos tempos senhoriais os lacaios sentiam a falta de um doce, a que nunca tinham direito no final das suas parcas refeições, vendo os seus amos lambuzarem-se com inúmeras e deliciosas sobremesas que eles, os lacaios, apenas comiam, à distância, com um fugaz olhar, crescendo-lhes a água na boca, hoje, tenho a sensação daquela falta de um docinho, especial, que não sei onde se fabrica nem exactamente qual é. Ou saberei...?
Todos sabem do que falo.
Talvez este primeiro dia de chuva já um tanto invernosa que nos força a distanciar dos dias longos de luz e calor de um Verão que foi, este ano, particularmente extenso (como eu gosto do Verão...), e a proximidade, inevitável, dos dias mais curtos e fechados de Sol que, confesso, nada me alegram a alma, me amargue um nadinha a boca.
Não deixo aqui um amargo de boca, longe disso; deixo-vos, isso sim, a imagem que vejo da minha janela, de um céu raiado de espessas e realçadas nuvens, contrastantes nas mais diversas tonalidades de cinza, muito expressivas, com uma enorme e própria beleza, que respondem ao meu olhar, dizendo: a força da Natureza é incomensurável nas suas mutações.

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  • Pensamento da ordem: Há alturas em que os nossos dedos são meros bonecos articulados do nosso espírito. Há pouco lia e relia o post anterior, como costumo fazer em relação aos meus escritos, para encontrar defeitos e fazer pequenas correcções de pormenor, até que fui assolado por uma luz. Saiu-me isto das mãos em jeito de relâmpago: «Às vezes, o mundo devia tirar folga à sexta-feira à tarde e viver as horas como se fossem as noites de sábado».

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  • Quando não damos por nós na vida: Há dias em que não damos por nós na vida: perdemos muito tempo na fila de trânsito, a mesa de trabalho espera-nos carregada de papéis, a hora de almoço passa a correr e o regresso a casa é longo e penoso. O jantar já está para trás, não há coragem para ler os livros em cima do sofá e a luz da mesinha de cabeceira apaga-se. Assim, como um sopro. Mais um dia que passou ao lado da vida.

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  • segunda-feira, setembro 29, 2003

    A natural crueldade das crianças: Este curto episódio, real, dá-me imensa vontade de rir por ter conhecido os protagonistas que nele participaram, imaginando eu, facilmente, a cena ao vivo. Falo de um pai e uma tia, ou dois irmãos; um rapaz e uma rapariga, ela mais velha do que ele, rondando as idades entre os 6 e os 9 anos, julgo.
    Imaginem dois manos, ele bem traquina, ela mais sossegada mas nada difícil de se deixar contagiar, que tinham como animal de estimação um cão rafeiro mas vistoso; o melhor parceiro para as suas brincadeiras mais estouvadas.
    É mesmo maldadinha o que vem a seguir mas não mereço punição por isso, certo?!
    Drak, nome do rafeiro, cão pouco afortunado nas mãos destas duas ditosas criancinhas, era alvo de sevícias como esta: cheirando chouriço de carne, do bom, o Drak, com um cartucho de papel pardo enfiado na cabeça até ao pescoço, olhos vedados e apenas dois buracos no cartucho que permitissem o olfacto e a degustação (ó que degustação...), comia sucessivos bocados de pão seco, cheirando em simultâneo o chouricinho. Só quando o pobre Drak se mostrava completamente embuchado por tanto pão e "cheiro", as inocentes criancinhas, sufocadas de riso, paravam de lhe enfiar pão pela boca abaixo. Drak resistiu sempre. Salve-nos isso.
    Relembrar, ainda, o evidente remorso com que os autores, já bem adultos, narravam esta brincadeira, apesar de tudo entre sorrisos, e lembrando-me, também, de umas outras crianças, ainda aparentadas (...!), que se entretinham a apanhar moscas tirando-lhes as asas e gozando o efeito dos seus pulinhos rastejantes, interrogo-me sobre o porquê da natural crueldade das crianças.

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  • domingo, setembro 28, 2003

    Correio Expresso: Pois... assim parti... assim cheguei. As férias terminaram. Que beleza o fim das tardes dos dois últimos dias de praia no ameno clima deste nosso Algarve. As gaivotas poisadas em grandes bandos quer à beira-mar - mesmo junto à espuma das curtas e suaves ondas - quer no extenso areal praticamente deserto e apenas emoldurado pela tonalidade clara de um azul de céu e por um Sol, um tanto triste por se sentir a distanciar da Terra, formavam grupos silenciosos como quem combina, em surdina, o destino dos dias seguintes, mesclando o fundo do seu plano numa mancha de cores branca e preta, rigorosamente sombreada.
    Sempre me deleitei a observar nos finais de Setembro, estas ciganas dos mares e céus que nem ousam piar por receios sabe-se lá de quê. Não são aves migratórias, sei disso, mas é sempre assim. Filas e filas de gaivotas poisadas no chão, muito ordenadas, que nada ou ninguém parecem ver e nos levam a pensar que programam o seu destino para a estação seguinte do ano. E confesso-vos... é irresistível a minha aproximação daquelas ciganas, que me dizem sempre que me sentem por perto e nunca me confessam nada de nada.

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  • As pequenas coisas que me fazem falta: Hoje dei por mim a pensar nas pequenas coisas que me fazem falta. Sinto falta de pequenas coisas como se fossem bolos de chocolate ou pitéus culinários. Aqui vai uma que pode parecer louca numa primeira análise ou até inesperada por ser fora do comum. É verdade. Hoje dei por mim a pensar nas pequenas coisas que me fazem falta e uma delas remonta aos tempos em que andava de autocarro para todo o lado. Sinto saudades dessas alturas, não por andar mais a pé, mas sobretudo por ter ali o mundo, o país e a cidade ao alcance do meu olhar. Aprendem-se muitas coisas dentro de um autocarro cheio de gente. Ouvem-se conversas interessantes, vêem-se rostos fora do comum. Às vezes, é o contrário, é certo, mas também é saudável termos a noção do outro extremo. Bons tempos.

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  • sábado, setembro 27, 2003

    A propósito de uma frase, a propósito da morte: A Gilda mandou-me duas frases, uma delas muito especial e de um grande escritor português: «O que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento» (José Saramago – Cadernos de Lanzarote - sobre a morte de Miguel Torga). É que a morte física não é a pior das mortes. Nunca será a pior das mortes. O esquecimento pode ser o fim, a perda de identidade pode ser o fim, a loucura pode ser o fim. Tudo pode ser o fim antes da própria morte. Ao ler esta frase lembro-me de um belíssimo livro que li há um par de anos, O Retrato de Dorian Gray do irlandês Oscar Wilde, que deixava a marca de um pensamento fabuloso, saído de uma frase solta: Não é a morte que me aterra, mas a sua antecipação. Pior do que o próprio fim, pior do que aquilo que termina e abre um buraco, é o caminho a percorrer até esse buraco. Ao longo desse caminho, o sofrimento é bem pior do que a morte. Na morte em si nunca há sofrimento. Só beleza.

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  • sexta-feira, setembro 26, 2003

    Setembro, 5: A roupa da cama torna-se mais leve e os lençóis parecem mais frios, mais ingénuos, à medida que a noite avança de uma ponta à outra e os nossos gestos vão ficando lentos de emoções. Acorda-se de manhã e sente-se uma pálida nesga de sol a entrar pelo quarto, vê-se uma espécie de névoa a cobrir o céu e ouve-se o chilrear dos pássaros menos alegre. Custa sair da cama, estranha-se aquela voz, estranha-se todas as vozes e pensa-se: um dia destes a manhã vence a noite ao som da chuva a bater nos vidros da janela. Será o terror do Inverno.

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  • Frases que ficam: Há frases que ficam nos livros que lemos. Há frases que traduzem o enigma, a verdade, a mentira, a alegria e a tristeza nelas mesmas. Como se tudo coubesse na mesma frase. Ficam exemplos de algumas delas:

    Descobri que a solidão, disse ele alto para si mesmo no carro vazio, a caminho da serra, é uma pistola de criança num saco de plástico na mão de uma mulher apavorada. (António Lobo Antunes, em Conhecimento do Inferno).

    Porque a vida pesa tanto. É imensa, horrorosa, violentíssima, temos de agarrá-la com qualquer actividade para ter menos força. (Vergílio Ferreira, em Alegria Breve).

    A verdade, por consequência, é que as minhas próprias ternuras, nunca as senti, apenas as adivinhei. (Mário de Sá-Carneiro, em A Confissão de Lúcio).

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  • O exemplo da fábrica de emoções: Esta manhã na Praça da Alegria, programa da RTP 1, falava-se de cinema. A determinada altura, José Alberto Carvalho, pivot da estação pública, mas um dos convidados dos apresentadores Jorge Gabriel e Sónia Araújo, definia o cinema da seguinte maneira: é uma fábrica de emoções. Dentro da minha humildade de simples curioso, dou um exemplo: «Fala com ela» ou «Hable con ella» (título original em espanhol), do genial Pedro Almodóvar, é a tal fábrica das mais nobres emoções humanas. Passou ontem à noite na RTP1. Infelizmente, não pude pôr os meus sentimentos à prova, mas já o fiz nas salas de cinema.

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  • quinta-feira, setembro 25, 2003

    Perguntas muito frequentes: Às vezes, damos por nós a pensar. Por que nos acontece isto, por que nunca temos sorte, por que estamos doentes, por que os outros têm isto e aquilo e nós não, por que os outros são felizes, por que não temos dinheiro. Estas são algumas das perguntas muito frequentes que nos assolam diariamente e cujas respostas parecem não existir no presente imediato. É verdade. Mas uma coisa é certa: todas as pessoas que passam por grandes dificuldades na vida conseguem tirar disso mesmo efeitos extremamente positivos. Descobrem coisas novas. Novos rumos. Crescem. Quando caminhamos descalços em chão de terra dura, as feridas curam-se e são frutos que ficam para todo o sempre. A vantagem é descobrir a luz no quarto escuro - por muito escuro que ele seja, tem uma nesga de luz. É só abrir os olhos.

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  • Negociações em marcha, estejam atentos: A Maria é mesmo assim: aparece, desaparece e volta a aparecer, mas o regresso em definitivo está prometido para o início de Outubro. Ontem à noite, a direcção deste blog - eu e ela, claro - esteve reunida durante longas horas em duras negociações para definir a grelha de programação do próximo mês. Os canais de televisão costumam lançar as novas apostas em Setembro, mas nós achámos que essa não é a estratégia mais adequada. Escolhemos Outubro porque sim. Entre várias coisas, porque sim (e pronto, está decidido, está decidido - siga o baile!). Por isso, continuem atentos ao Remoinhos e esperem, esperem por muitas surpresas (sem roer as unhas, se faz favor).

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  • Um pezinho cá... um pezinho lá: Não, ainda não voltei de vez das minhas férias. Uns assuntos pendentes (como são incómodos os pendentes pendurados) fizeram-me poisar na cidade por dois dias. É pouquita coisa o que tenho a resolver e não dramatizo por isso. Em contrapartida, a satisfação da preenchente companhia de uma amiga do peito que não via, apenas, há escassas semanas e que tem sempre muito, em qualidade e grandeza para contar, superou qualquer desagrado - desagrado que nem existia, à partida - (não é para entender... não estranhem).
    Só voltarei a estar de corpo e alma no Remoinhos lá para o início de Outubro e com os joelhos a tremer de nervoso miudinho, estou a adivinhar.
    Crescer custa; oh se custa, mas ganha-se em passinhos caminhados por dentro de nós mesmos, nem que com alguns trambolhões.
    Durante quase um mês, Remoinhos ficou nos braços do meu amigo César, que o embalou e alimentou tão zelosamente.
    Começa a estar mais torneada esta criancinha e cada vez com melhor parecer e robustez.
    Quais os pais que não se sentem vaidosos dos seus rebentos.
    No meu regresso tudo farei para deixar aqui aos nossos leitores, diariamente, uma flor mais viçosa ou menos, conforme os Remoinhos de cada momento.

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  • quarta-feira, setembro 24, 2003

    Uma prenda para nós: A Gilda, segundo fontes bem colocadas, é uma leitora assídua deste blog e mandou-nos uma prenda, assim, quase caida do céu (e como sabem bem estas prendas inesperadas). Tudo a propósito da morte de Pablo de Neruda, um poeta marcante naquilo que há de mais belo neste mundo. Aqui fica a prenda, embrulhada pelas mãos e pela alma de Eugénio de Andrade. A gerência do Remoinhos agradece.

    Neste dia em que se completam 30 anos sobre a morte de Pablo Neruda, venho citar uma poesia do nosso grande Eugénio de Andrade sobre:

    Ver Claro

    ....Toda a poesia é luminosa, até a mais obscura.
    O leitor é que tem às vezes,
    em lugar do sol, nevoeiro, dentro de si.
    E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
    Se regressar
    outra vez e outra vez e outra vez
    a essas sílabas acesas
    ficará cego de tanta claridade.
    Abençoado seja se lá chegar!!!!....

    Eugénio de Andrade

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  • O chamado politicamente lamentável: É um caso triste. Três animais selvagens morreram por dosagem excessiva de anestesiante, quando membros do ICN (Instituto da Conservação da Natureza) pretendiam transportar os mesmos. Há erro humano - aliás, nenhum veterinário se apresentou no local -, ao que parece foi um electricista (!), pasme-se, que deu as injecções letais. Tudo começa numa ilegalidade: os animais em causa foram adquiridos por um particular no Jardim Zoológico de Lisboa, o que se lamenta. Agora, quem de direito e com responsabilidades nesta matéria diz o chamado politicamente correcto: «Lamentámos o sucedido e vamos abrir um inquérito para apurar as responsabilidades». É o politicamente lamentável.

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  • Setembro, 4: O quintal tem um misto de terra e de vento, um misto de palavra e de sabedoria. O ar vem das árvores, passa pelas videiras e traz com ele um cheiro agreste e vadio. A terra deixa de ser castanha, começa a ficar preta como as pontas dos teus cabelos e aquele ar envolve-nos o corpo, transportando o aroma das uvas que esperam por nós no alto das ramadas. A aragem parece mais macia como se a doçura estivesse ali: nas folhas que se agitam, naquele chiar de fúria e de suavidade. Nas vozes que escutámos...

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  • terça-feira, setembro 23, 2003

    Por falar em Pablo de Neruda: Faz hoje 30 anos que o grande Pablo de Neruda partiu para o sítio onde os homens ganham vida depois da morte. Já muito se disse e se escreveu sobre este mestre chileno, por isso gostava de centrar este post em Massimo Troisi, um actor italiano que interpretou o célebre Mário, em O Carteiro de Pablo de Neruda, um filme de rara beleza artística e que deixa uma mensagem ainda mais interessante: a poesia não se explica, sente-se. Datado de 1994, Il Portino (o nome original em italiano) revela a coragem de Troisi, um homem que colocou a sua saúde de lado por causa do amor pela sua profissão, pelo personagem que interpretou e quiçá por Neruda. Durante as filmagens, os médicos diagnosticaram-lhe problemas cardíacos que só a intervenção cirúrgica poderia diminuir os riscos de morte precoce. Mas Troisi não quis interromper a execução da obra, ciente de que a arte era mais importante do que a sua própria vida. No dia 4 de Junho de 1994 morreu, doze horas depois das câmaras terem filmado a última cena do filme. A vida e a morte não se explicam, sentem-se...

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  • Uma pergunta inocente: Nove em cada dez alunos que se candidatou ao ensino superior português conseguiu entrada directa. É um sucesso. Creio que o número em si ultrapassou todas as expectativas e leva a pensar que muita coisa mudou nos últimos anos. Só não sei o quê, por muito que pense. Ou as médias baixaram ou o nível de inteligência dos alunos aumentou. Opto pela primeira hipótese sem menosprezar os que se inserem no segundo grupo e deixo uma pergunta inocente: por que é que no meu tempo (há oito anos, portanto) não era assim?

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  • segunda-feira, setembro 22, 2003

    Sim, foi o inferno: Na cidade do Porto, o dia europeu sem carros foi dos dias mais agitados dos últimos tempos. Superou a agitação do Inverno, naquele pára arranca bem típico dos tempos de chuva. Houve buzinões e tudo. Houve protestos, também. A autarquia cortou 22 ruas e o caos instalou-se como aquelas dores de cabeça que surgem do nada mas chegam a tudo. Este é mais um exemplo de como se dá um passo em frente com o pé esquerdo, porque este era o dia ideal para que a população estivesse preparada e se sentisse sensibilizada para uma causa tão nobre. Não houve nenhuma campanha de informação. Por isso, o caos. O caos nunca será como as dores de cabeça, não surge do nada.

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  • domingo, setembro 21, 2003

    Setembro, 3: Chegar ao fim do dia e sentir o cansaço no corpo, uma espécie de frio nos braços, constatar que a temperatura baixou e ter saudades da roupa de Inverno. Dos casacos e das camisas de manga comprida que se acumulam nas gavetas cobertas de naftalina. Os passeios à beira-mar terminam, a aragem da noite é mais fresca e as ruas na marginal começam a ficar desabitadas de gente como as aldeias do interior a sentirem-se desertas. Os caminhos vão dar ao mesmo sítio: a casa, onde as folhas das árvores já são pouco esverdeadas. Está tudo perto do fim...

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  • Não sei o que pode ser: Às vezes, atravessa-me uma nostalgia como quem está sentado num banco de jardim a recordar o que viveu. Mas o meu processo é bem diferente. Quando passo por locais que viveram de perto comigo, o ritual repete-se sempre, assim, como não quer a coisa. A minha nostalgia é estranha: não penso, automaticamente, naquilo que vivi, naquilo que ali passei, naquilo que me foi oferecido, o que me vem à cabeça é o que mudou. Que tem mudado tudo ao longo dos anos. Que as folhas caem, que as paredes estão mais sujas, que os vidros conseguem ser ainda mais foscos, que o chão parece mais gasto. Olho para tudo aquilo e sinto que tudo aquilo, de repente, perdeu toda a sua identidade e já nada me diz. Isso assusta-me tanto.

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  • sexta-feira, setembro 19, 2003

    SIC Mulher: Em Remoinhos me confesso. Sou homem, mas gosto de ver a SIC Mulher. Adoro os debates, aprecio as entrevistas, acho tudo aquilo muito bem feito. Mas, às vezes, interrogo-me se aquele canal - acho que faltava um canal assim no nosso país - é feito única e exclusivamente para mulheres. O nome do produto disfarça bem. Gostava mesmo de saber, porque acho que são mais os homens do que as mulheres a assistir, os níveis da audiência em pormenor. Depois deste desabafo, acusem-me do que quiserem.

    PS: Se fosse uma figura pública, um certo jornal generalista faria uma primeira página com a minha foto de cima abaixo e sob o título: «Ele vê a SIC Mulher». Felizmente, não sou famoso. Nem tenho cães (Gastão, o cão de Ferro Rodrigues, deve ser mais conhecido nos bancos de escola do que os ministros todos do actual Governo). Só espero que o mesmo jornal não se lembre dos periquitos e dos papagaios da gente famosa. Cada vez chego à conclusão de que as coisas verdadeiramente importantes já não são notícia.

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  • quinta-feira, setembro 18, 2003

    Afinal o que é a cultura?: Ao ver um documentário sobre a vida e obra de Leni Riefenstahl, polémica realizadora alemã recentemente falecida, cheguei à conclusão que é difícil (senão impossível) definir o conceito de cultura. Ou melhor, é uma missão de risco dizer, ao certo, se um povo é mais evoluído do que outro, se tem mais, ou menos, valores culturais do que este ou aquele. Na década de 60, Riefenstahl viveu em África, onde acompanhou de perto os usos e costumes de várias tribos do Sudão, tentando evidenciar o culto da forma e da estética na vida quotidiana daquela gente. Vi coisas que me surpreenderam pela positiva. Que a arte não são só os quadros de Salvador Dali ou de Picasso, por exemplo. É mais do que isso. Pintar a cara de várias cores, numa combinação cromática perfeita, de linhas suaves e de desenhos fascinantes é tão sublime como um quadro famoso num museu conhecido. Será que os tribais são inferiores aos grandes artistas plásticos?

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  • quarta-feira, setembro 17, 2003

    11 de Setembro, 15: Há um silêncio arrepiante dentro da cabine do avião, uma espécie de voz seca, sem voz, uma espécie de palavra muda, sem palavra. O aparelho está cheio. Todos, sem excepção, olhámos atentamente para a hospedeira à medida que os seus longos braços explicam as regras de segurança em caso de acidente. Lutámos contra o cansaço, lutámos contra nós próprios e a viagem entre Liverpool e a cidade do Porto é feita num misto de expectativa e de medo. Houve momentos em que a turbulência do avião era um sopro interior, uma aragem fria e arrepiante nos nossos corações; houve momentos em que imaginámos a dor e o pânico de quem está ali dentro e sabe que o seu último destino é uma torre envidraçada, que o seu último destino é a própria morte. Aquele foi um dos piores momentos de todos os momentos da minha vida. Só terminou quando aterrámos.

    FIM

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  • O tempo: Tudo o que vier a seguir a hoje será a rotina. As férias terminaram ontem. Espera-me a minha secretária, o telefone, a cadeira vermelha - muito confortável, aliás - e aquelas horas que são, por vezes, de grande alegria, mas, outras, de enorme stress e sufoco. Quando as férias terminam, invade-nos a mesma sensação: souberam a pouco, passaram depressa, não houve tempo para nada, agora só haverá mais para o ano. O nosso problema é ter pouco tempo. Para isto, para aquilo e para nós mesmos. Se o tempo se pudesse comprar no supermercado, não hesitaria um segundo. Nem sequer esperava pelos saldos.

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  • terça-feira, setembro 16, 2003

    11 de Setembro, 14: Antes de entrarmos no avião, nota-se um clima de tensão em cada rosto e nas palavras que dizemos uns aos outros para quebrar a monotonia daquele silêncio. Fuma-se compulsivamente, olha-se para o chão, sente-se uma espécie de corrida contra o tempo, um clima de desconfiança promovido pela polícia no aeroporto, um controlo rígido que faz subir o nervosismo em flecha e todos nós parecemos simples animais à espera do que pode acontecer. À espera de ordem para embarcar depois de termos sido revistados até à última extremidade do nosso corpo. À espera de uma voz que não ouvimos. À espera de um sinal que não vemos. É a mais sufocante de todas as esperas. Esperar sem saber o que pode acontecer a seguir.

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  • 11 de Setembro, 13: Ponto da situação: o voo de regresso ao Porto está atrasado. No aeroporto de Liverpool, os voos estão todos atrasados. Todos. Os homens de metralhadora na mão continuam a olhar para nós num misto de desconfiança e de fúria. Na sala de embarque organizámo-nos em fila indiana para sermos alvo de um rigoroso controlo de segurança: somos revistados e apalpados pelas autoridades. Chega a minha vez, depois de ter estado cerca de uma hora à espera. Sinto-me um criminoso da pior espécie. Tenho de abrir os braços e as mãos, enquanto um polícia me passa os dedos pelo corpo. Depois, abro a mala. Ele revista-me as coisas. Um a um, todos os passageiros são autenticamente passados a ferro. Não há tempo para contemplações.

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  • segunda-feira, setembro 15, 2003

    Ainda os incêndios: Não resisto à tentação de voltar a focar o tema. Nunca um produto foi tão bem embrulhado à medida dos portugueses. As chamas entram-nos pela casa dentro através da televisão, visualizam-se labaredas incandescentes, ouvem-se os gritos de quem fica sem casa e os jornalistas fazem directos à boa maneira americana: como se estivessem no campo de batalha. Despenteados, com a roupa encharcada de água e as mãos a tremer. Em época de crise, as emoções disparam em flecha à custa desta cobertura mediática que abre telejornais atrás de telejornais. É um produto que toca no íntimo de todos e alimenta a fúria de quem gosta desse tipo de espectáculos. Insistir nesta matéria, é persuadir os criminosos a incendiar o que resta. Mas em Portugal só as emoções conseguem vender. Quando alguém vai para a cama no Big Brother com não sei quem, as audiências disparam em flecha. Querem melhor exemplo?

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  • 11 de Setembro, 12: Aquela era a noite mais negra do que todas as noites reunidas numa só. O autocarro avança em direcção ao aeroporto, a furar o manto escuro do mistério por entre luzes pálidas e amarelas. Passei aquele tempo todo ao telemóvel enquanto observava o mundo para além do vidro. Há um vazio, sente-se um vazio, nas vozes que oiço, na minha própria voz. No aeroporto está tudo montado: a carga policial é fortíssima, homens de metralhadora desafiam-nos com um simples olhar como se tudo aquilo se tivesse transformado num perigoso campo de concentração ou numa prisão de alta segurança. Somos mirados com desconfiança. Somos suspeitos de tudo, até dos passos que damos no chão granítico da aerogare. Somos suspeitos da desconfiança do mundo.

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  • 11 de Setembro, 11: A tarde avança e com ela o mesmo tique nervoso. Quase em todas as horas, há uma tendência natural de olhar o céu, observar e perguntar: há algum avião lá no alto? Durante algum tempo, o céu passa a ser o inimigo número um como se algo mau pudesse desabar lá de cima, uma espécie de trovão fulminante capaz de ameaçar o sítio onde estamos. A contra-informação chega ao fim. Agora, é oficial: vamos viajar na noite de 11 de Setembro de 2001. Há garantias nesse sentido. O espaço aéreo inglês não foi encerrado, mas persiste aquele nervoso miudinho dentro de nós. Uma angústia. Enquanto isso, já consigo fazer chamadas telefónicas. Peça a peça começo a fazer o puzzle do pesadelo de Nova Iorque.

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  • O sono: Às vezes, acontece. Damos por nós na noite e somos nós: à espera do sono como quem espera a noite. Em silêncio. Eu aguardo...

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  • domingo, setembro 14, 2003

    Uma nota: Várias pessoas ficaram com a pulga atrás da orelha ou preocupadas com a paragem súbita deste blog durante o fim-de-semana. Nada de dramas. Simplesmente, tive compromissos privados que me obrigaram a uma breve ausência. Estou de regresso e com muita genica nos dedos para recuperar o tempo perdido. Mas, desde já, deixo um aviso: terça-feira será o meu último dia de férias, o regresso ao trabalho está iminente e o fluxo do Remoinhos vai diminuir um pouco, pelo menos enquanto a Maria, a minha companheira de estrada, continuar a gozar o seu merecido descanso. Fica o aviso.

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  • sexta-feira, setembro 12, 2003

    Os incêndios e a cura da SIDA: No nosso país, já deu para perceber que o fim dos incêndios é como descobrir a cura para a SIDA. Tivemos um dos Verões mais quentes dos últimos 20 anos, o que suscitou uma vaga de labaredas pelas florestas, provocando a destruição de milhares e milhares de hectares verdes. Mas a desgraça não serviu de lição para o que se tem assistido estes dias. A temperatura subiu em flecha e o fogo voltou a consumir as matas tal como aconteceu há um mês. Este indicador dá para chegar a vários conclusões: no próximo ano vamos ter a mesma saga cor de laranja; não é só a subida de temperatura que está na base dos incêndios. Há mão criminosa, porque a mesma causa - por muito repetida que seja -, não pode implicar, necessariamente, o mesmo efeito. Mas tudo começa e acaba nesta questão: há desleixo por parte das autoridades, que não limpam as florestas nem sequer as vigiam como deviam. Às vezes, os senhores do poder são como as crianças: quanto mais apanham, mais repetem o erro.

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  • 11 de Setembro, 10: A partir de agora, há uma ideia que me começa a invadir a mente como a poeira a cobrir os móveis: tenho de fazer uma viagem de avião naquela mesma noite. Não me agrada. Penso em tudo, coloco-me do outro lado do muro, reflicto e imagino. Não me agrada. Depois das imagens cruéis passarem na televisão, a última coisa que um ser humano pode desejar é ver-se dentro de um avião naquele dia, ter a certeza que vai cruzar os céus e não ter a certeza de mais nada. Porque desconfia-se do que pode acontecer no minuto imediatamente a seguir ao anterior. Torço para que a viagem seja adiada, para que o espaço aéreo europeu seja encerrado, mas cresce em mim um desejo contínuo de regressar a casa. De ver os meus. De sentir o meu espaço, as minhas paredes, o meu quarto, os lençóis da minha cama. É como estar numa encruzilhada e não saber que caminho escolher.

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  • 11 de Setembro, 9: É difícil descrever isto: Liverpool era uma cidade fantasma e o hotel onde estava instalado o exemplo perfeito do caos. As malas de dezenas e dezenas de hospedes acumulavam-se no hall de entrada; os empregados não paravam um único segundo. As informações eram contraditórias. Não havia garantias que viajássemos naquela noite - diziam que o espaço aéreo europeu seria encerrado -, o hotel não teria capacidade para receber tanta gente. Não havia certezas de nada. Só uma realidade dura, crua e sangrenta como todas as más notícias deste mundo: a segunda torre do World Trade Center desabava como um castelo de cartas. Não havia esperanças de nada. Tudo acabava como no primeiro instante. Em choque prolongado. Em choque angustiado. Nenhuma palavra era mais forte do que aquela imagem do choque.

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  • 11 de Setembro, 8: Alguém diz: «Isto pode ser a Terceira Guerra Mundial». Continuo sem conseguir fazer chamadas de telemóvel. O gelado de chocolate já é um pedaço líquido, a boiar no prato, as cadeiras estão vazias e as mesas desertas. A televisão é o alvo do nosso olhar. Até que saímos em direcção às ruas despidas de trânsito e de gente. Do restaurante até ao hotel, há uma sensação estranha, uma desconfiança terrível de olhar o céu em quase todos os passos. O sol mantém-se vivo, o azul parece mais forte, mas não se vê um único avião a cruzar Liverpool. Pelo caminho, vou recebendo alguns telefonemas - mas eu não consigo fazer um único - que me colocam a par de toda a situação: uma das torres desabou; o espaço aéreo americano foi fechado; há um número incalculável de mortos e feridos. Tenho voo de regresso ao Porto para a noite daquele dia. Chego ao hotel, está instalado o caos.

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  • quinta-feira, setembro 11, 2003

    O prometido é devido: Ainda sobre a vida é como um pedaço de sal a derreter-se na boca, recebemos e-mails que mereceram honras de publicação. O tema suscitou muitos Remoinhos junto dos nossos leitores e a saga não vai ficar por aqui. Na altura, tínhamos dito que iríamos oferecer prémios para as melhores revelações e como somos gente séria, crescida e honesta não vamos faltar à palavra. Temos prémio, só não temos vencedor. Calma, nada de dramas. Simplesmente, achamos que não há vencedores nem vencidos. Há, sim, gente com alma de poeta e que participou neste desafio. Para eles, o prémio: Poetas, de Florbela Espanca. Deliciem-se.

    Poetas

    Ai as almas dos poetas
    Não as entende ninguém;
    São almas de violetas
    Que são poetas também.

    Andam perdidas na vida,
    Como as estrelas no ar;
    Sentem o vento gemer
    Ouvem as rosas chorar!

    Só quem embala no peito
    Dores amargas e secretas
    É que em noites de luar
    Pode entender os poetas

    E eu que arrasto amarguras
    Que nunca arrastou ninguém
    Tenho alma pra sentir
    A dos poetas também!

    Florbela Espanca

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  • 11 de Setembro, 7: As imagens repetiam-se na televisão como um sonho mau a perseguir-nos na cama por entre uma luta de lençóis. Uma atrás da outra, o avião a chocar numa das torres, o outro avião a seguir o trilho do primeiro. Até que saí do restaurante. Por iniciativa própria. Porque precisava de saber mais, um pouco mais daquele filme a preto-e-branco e de final triste. As imagens já não satisfaziam a minha curiosidade, só me arrepiavam. Precisava que me dessem mais informações. Primeiro instinto: o olhar. As ruas estão desertas, não se vê vivalma, não há um único carro a circular e os sinais luminosos apenas enfeitam as artérias vazias. Nada mais do que isso. Ninguém desafia a lei da rua, ninguém sai de casa, estão todos recolhidos - Liverpool transformou-se numa cidade fantasma como nos filmes de cowboys americanos. Segundo instinto: o telefone. Tento uma, duas, três vezes. Não se consegue fazer uma única chamada. Ouvem-se impulsos nervosos, contínuos, do outro lado. Nada feito. As linhas estão sobrecarregadas. São muitos os ouvidos, como os meus, curiosos e sedentos. O que se está a passar no mundo?

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  • 11 de Setembro, 6: Ele acabou por ligar a televisão. Foi preciso insistir muito com o dono do restaurante em Liverpool, mas conseguimos levar a nossa ideia até ao fim. Observávamos tudo em silêncio, atónitos, boquiabertos, pálidos de receio e desnutridos de movimentos. Parece que o tempo tinha parado naquele instante, uma espécie de clique teria conservado aquele espaço suspenso, durante longos minutos, à medida que a televisão repetia o inevitável: o primeiro avião a rasgar uma das torres do World Trade Center; o segundo a repetir a façanha do primeiro. Uma enorme bola de fogo a misturar-se com o azul do céu; o fumo negro a esvoaçar pelas janelas dos edifícios; o pânico aterrador das pessoas; os suicidas a preferirem o último salto de vida do que o fim trágico nas labaredas. Naquele restaurante havia um misto de dor, mas também de profunda revolta. Silêncio.

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  • 11 de Setembro, 5: Entre um inglês e um escocês, por exemplo, escolho sempre o segundo. É mais amável, mais generoso e tem um bom espírito de comunidade. Já sabíamos da notícia. Caiu, assim, como um pedra atirada ao chão por um homem cheio de força. Fez um enorme estrondo nas nossas cabeças, foi uma espécie de grito estridente que nos roubou o apetite pelo gelado de chocolate. Tirou-nos as forças, fez-nos pensar e imaginar o que se estaria a passar no coração de Nova Iorque. Levantámo-nos, abandonámos a mesa como as crianças que desesperam por estarem sentadas a ver os adultos a comer, pedimos ao dono do restaurante para ligar a televisão. Ele não queria. Fomos educados, insistimos de novo, porque as mensagens e os telefonemas que recebíamos não eram suficientes para construirmos o quadro mental sobre todos os acontecimentos. O homem não queria ligar a televisão. Por isso, entre um inglês e um escocês prefiro o segundo. Sem dúvida.

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  • 11 de Setembro, silêncio por eles: Apenas e só. Silêncio por eles. Nada mais.

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  • 11 de Setembro, dois anos depois: É verdade. Parece que foi ontem, mas já passaram dois anos que o mundo conheceu uma das suas faces mais negras e rebeldes. Uma nova vaga de terrorismo apareceu do outro lado do muro movida por causas mais do que extremas: ódio de morte aos ocidentais, em particular aos Estados Unidos, em que meia dúzia de mortes compensam o sangue de milhares de vítimas. A filosofia do catastrófico dia 11 de Setembro de 2001 foi mais ou menos assim, quando dois aviões comerciais chocaram voluntariamente nas Torres Gémeas numa acção perpetrada por Bin Laden. Isto toda a gente sabe. Nem convém chover no molhado. No entanto, vou dedicar o próximo post às vítimas dos atentados terroristas de há dois anos. Estejam atentos.

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  • quarta-feira, setembro 10, 2003

    Re: A vida, 2: A frase a vida é como um pedaço de sal a derreter-se na boca tem causado muitos remoinhos junto dos nossos leitores (eu e a Maria tínhamos prometido agitar as águas, lembram-se?). Por isso, temos sido bombardeados por vários e-mails sobre a tal metáfora que me saiu dos dedos ontem à noite. Mesmo assim, não estamos satisfeitos. Queremos mais opiniões, mais emoções, um pouco mais do que os nossos leitores têm de bom. As melhores ideias terão direito a um prémio. Desta vez, quem vestiu a capa da coragem foi a Katheline. Aqui vai o seu texto:
    «Esse pedaço de sal é o sódio da vida, mas, inevitavelmente, a parte boa é, sem dúvida, aqueles momentos que antecedem a sua extinção, aparente ou real, deixando aquele sabor do mar, das lágrimas e do suor que cada ser finito soube apreciar e com ele soube como ser feliz sem mais nada pedir.»

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  • Parabéns, Big Brother: Depois de uma certa resistência, apetece-me escrever sobre o programa que costuma conquistar o coração de milhares e milhares de portugueses. É a casa mais famosa do país, segundo dizem os apresentadores. Esta nova versão do Big Brother não podia ser tão boa, por ir ao encontro das expectativas do povo. Não tenho dúvidas que os concorrentes foram escolhidos a dedo, são a imagem da grande fatia humana de Portugal: gente feliz e contente por isto e por aquilo e incapaz de distinguir a diferença entre o preto e o branco. A produção do programa está de parabéns, porque seleccionou gente que será revista pela massa habitacional desta terrinha. Tal e qual como os americanos se revêem no seu venerado e exemplar George W. Bush. O caminho para chegar ao sucesso voltou a ser curto e directo. Parabéns, Big Brother.

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  • 11 de Setembro, 4: Sim, conversávamos sobre os Estados Unidos naquela magnífica cidade de Liverpool, onde há imagens dos Beatles um pouco por todo o lado: nas casas, nas ruas e nas lojas comerciais. Eles resumem tudo daquela gente, são um mito venerado como se fossem os heróis que todos gostavam de ser. O telemóvel toca. Era o meu pai. Pergunta-me só isto: «Está tudo bem?» A minha resposta é clara: «Tudo óptimo». Não sei o que dissemos mais um ao outro, também pouco importa. Recuperei o fio da conversa enquanto o chocolate do gelado se entrelaçava com a baunilha num efeito acastanhado de cores. Continuávamos sem saber de nada. Ali, distantes do outro lado de lá do mundo, onde nuvens negras já cercavam o céu naquele ritual bem próprio das grandes catástrofes. Não sabíamos de nada. O meu pai nada me quis dizer. Até que um telemóvel recebe uma mensagem. Era o princípio do fim.

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  • 11 de Setembro, 3: O mundo será sempre feito de coincidências. É como uma lei escrita por alguém sem nome e sem lugar. Os bifes de molhos esquisitos foram escolhidos por nós como a fonte capaz de saciar a nossa fome depois de uma manhã desgastante. Não sei que horas eram, se é tarde ou se é cedo, pouco importa. O barulho do restaurante diminuiu, alguns clientes foram saindo sem deixarem rasto nem ruído. Estávamos nós, assim, a saborear a sobremesa, um maravilhoso gelado e a conversar muito animadamente como quem está a jogar cartas: sem pressa, aproveitando cada minuto como se fosse o primeiro do mundo. Assunto em cima da mesa: os Estados Unidos. Sem rodeios, sem explicações. Falávamos daquele país que alimenta ódios e paixões à medida que matávamos a nossa fome. Naquela altura, nada sabíamos do que estava a acontecer em Nova Iorque. Daí que o mundo seja feito de coincidências. Sempre de coincidências.

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  • Re: A vida: A 2 de Setembro, às 22.51 horas, escrevi um post sobre a interactividade deste blog, dando a entender que este espaço é a antítese de um rio. Se um rio corre sempre da nascente para a foz, o Remoinhos tem dois sentidos: de cá para aí, daí para cá. Dentro desse espírito, recebi um e-mail de uma leitora sobre a vida é como um pedaço de sal a derreter-se na boca. Aguardo mais respostas de outros corajosos. Aqui vai o texto da Antónia:
    «A vida, para além de ser vivida, deve ser saboreada, mastigada, muitas vezes engolida e sempre deglutida. Por vezes, ao tomarmos o seu sabor, cai um pedaço de sal na nossa boca que a torna amarga, salgada e que não nos agrada mesmo nada. Sabem o que isso é? É quando a vida não nos corre bem...»

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  • A vida: Há bocado isto saiu-me dos dedos: a vida é como um pedaço de sal a derreter-se na boca. Tirem as vossas conclusões...

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  • terça-feira, setembro 09, 2003

    11 de Setembro, 2: As ruas vão ficando mais estreitas, os pés mais pesados e o barulho dos automóveis parece mais distante. A fome aperta enquanto algumas gotas de suor começam a cair pelo rosto depois de uma longa caminhada. O edifício de tijolo inglês esconde um restaurante de portas castanhas e de vidros pequenos. Está cheio. O barulho é infernal: conversa-se em voz alta, devoram-se saladas como quem bebe uma enorme caneca de cerveja e abatem-se bifes grossos e de molhos esquisitos num simples pestanejar de olhos. O ritmo é intenso. Os que têm o estômago vazio e comem como alarves; os que andam de um lado para o outro a servir os clientes; os que falam sem demora como se estivessem a fazer um longo discurso político. Depois há os que observam, num canto da sala, toda esta mecânica inglesa de matar a fome. Eu e alguns observávamos tudo em silêncio. Como sempre, aliás.

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  • 11 de Setembro, 1: Aquela era uma manhã de sol igual a todas as manhãs de sol do mundo. Estava calor, lembro-me bem. Em Liverpool, as ruas começavam e terminavam da mesma maneira: pessoas e carros preenchiam o espaço num ritmo bem cosmopolita. Ninguém sabe de onde vêm, todos desconhecem para onde vão. É uma cidade pequena, é certo, mas tem a vida e a alma das grandes cidades como os homens e as mulheres partilham o mesmo sentimento de paz quando se sentem felizes. Agora, à distância de dois anos, olho para trás e penso. Nada fazia crer que uma nova página se escrevesse no mundo depois daquele dia. Pelo menos, na cidade onde nasceram os Beatles era assim, o reflexo de um dia vulgar, igual a tantos outros; pelo menos, no coração de Nova Iorque devia ser assim antes de começar a tragédia. Até que fui almoçar...

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  • 11 de Setembro: Depois de amanhã faz dois anos que o mundo viu dois aviões comerciais a furarem as janelas envidraçadas do World Trade Center como se fossem facas afiadas a rasgar pedaços de carne. Parece que foi ontem, é verdade, mas o tempo passou depressa, embora a memória não apague tão facilmente os vestígios da tragédia. Todos nós vivemos e sentimos, embora à distância, a carga de um dos dias mais negros da história recente da humanidade. Não fugi à regra. Mas tive a particularidade de nesse dia, depois de ver pela televisão o choque e a catástrofe, ter de fazer uma viagem de avião. É essa experiência que quero partilhar: o que senti, o que vi nos aeroportos, a imagem deserta das ruas em Liverpool, onde me encontrava naquele momento. Terça-feira começa uma saga de vários capítulos sobre as minhas recordações do 11 de Setembro. Fiquem atentos.

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  • segunda-feira, setembro 08, 2003

    Como os efeitos me vêm parar às mãos: Às vezes, funcionamos por efeitos. Há uma causa e isso implica um efeito imediato. Se gostamos de uns sapatos, arregalamos os olhos em plena montra. Este simples arregalar de olhos, é um efeito. Depois, chegamos a casa e pensamos neles. É mais um efeito. É o efeito de que aquilo que vemos vai ao encontro do nosso gosto. Preenche-nos. Quando vou ao cinema também funciono por efeitos. Quando um filme me encanta, quando me sensibiliza, causa em mim um efeito que tem tanto de fantástico como de assustador: sinto que saio desta vida e entro noutra, naquela que durante duas horas se ergue na tela. O filme chega ao fim, a sala continua fechada naquele negro curioso, as luzes aparecem, levanto-me e saio. Durante longos minutos, não estou em mim. Estou do outro lado e tudo gira dentro da minha cabeça: os gestos, as vozes, as pessoas e o fio condutor da história. Esse é o efeito de que o filme foi bom. Serei louco?

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  • domingo, setembro 07, 2003

    Setembro, 2: Recordações... Contar as semanas e os dias até à exaustão e ter a certeza de que as férias grandes estavam a chegar ao fim. Querer agarrar o tempo, travar aquele movimento rápido, em contagem decrescente, do pouco que restava para a azáfama das aulas começar: os autocarros cheios de gente; o inferno dos testes; as tardes preenchidas por livros à frente. Pegar nos cadernos e cheirar o papel, sentir aquele aroma suave, tão suave... Sentir aquele cheiro a novo (que bom era aquele cheiro) à medida que os dedos deslizavam por entre as folhas lisas e brancas. Ter a percepção de que a angústia estava perto, o sol, a praia e o descanso tinham chegado ao fim.

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  • Afinal, o que é a sorte: Às vezes, dizemos que não temos sorte, porque tudo nos acontece. As longas filas de trânsito antes de chegarmos ao emprego, a eterna dor de cabeça ao final do dia, o café torrado logo após o almoço. E ainda aqueles problemas enormes como o arranhão no braço direito, a borbulha na testa e os quilos a mais na barriga. Há outros desastres: a casa constantemente desarrumada, o tédio de domingo à tarde, o carro a precisar de mais uma revisão, o dinheiro a sair do bolso porque o condomínio aumentou, a promoção que não aparece no local de trabalho. A tudo isto chamamos falta de sorte. Hoje à tarde vi uma criança deficiente nos braços de uma mãe ainda jovem. Agora, sim, já sei o que é a falta de sorte...

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  • Alguém me explica aquele silêncio?:O sol de sábado convida-nos para um passeio fora da cidade, sem demoras, por esses caminhos recheados de mistério. Eu e a C. optámos por Santa Maria da Feira, a poucos quilómetros do Porto, por causa do seu castelo medieval: nunca rejeitamos a hipótese de tomar contacto com os retalhos do nosso passado. Ao lado do imponente monumento há uma capela, que contou com a nossa visita. Começámos por aí. E a pergunta voltou a pairar na minha mente tal e qual os tempos em que era uma simples criança: por que nunca conseguimos quebrar o silêncio de uma igreja? Estávamos os dois, mais ninguém, falávamos baixinho como duas beatas na missa. Ainda tentei colocar a voz no seu volume normal. Impossível. Aquele silêncio místico exerce sobre nós um domínio absoluto, de respeito e de medo. Por que será?

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  • sábado, setembro 06, 2003

    Setembro, 1: A noite vence a tarde mais cedo e o vento sopra em ritmo desenfreado, trazendo um estranho odor agreste. As ramadas estão carregadas de uvas e aquele cheiro a vindima sai dos quintais como as palavras a escaparem-se da tua boca. É um misto de terra e de ar. De verde e de azul. Foge pelos portões abertos até à estrada, empurrado pela aragem a zumbir nas pedras. É um misto de fogo e de água. De castanho e de amarelo suave.

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  • sexta-feira, setembro 05, 2003

    Atentado de poesia: A que soa este título? Ouvi há minutos, na TSF, que um grupo de poetas está a programar uma iniciativa em grande para o 11 de Setembro. Dois anos depois do mundo ter sentido na pele os efeitos sangrentos de uma nova vaga de terrorismo internacional, alguns intelectuais pretendem suavizar os efeitos do atentado ao World Trade Center. A ideia é simples: distribuir livros em vários pontos do globo, se possível obras marcantes para alterar os estados de espírito mais extremistas. Louvo a ideia. Aprovo-a na íntegra. Mas acho que o nome da iniciativa é muito infeliz. A poesia e a literatura nunca são um atentado a nada, bem pelo contrário. Significam vida. Libertação. Luz. Atentado, nunca.

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  • O optimismo dos portugueses: Esta sondagem tem a sua dose de ironia, por isso, merece ser comentada e criticada da forma mais louca possível. Segundo ouvi num serviço noticioso, os portugueses revelaram grande optimismo em relação aos tempos de crise durante o mês de Agosto. É um dado favorável numa altura de recessão, dá a entender que os espíritos estão menos cinzentos do que no passado, mas esta sondagem de opinião vale zero. Exactamente, z-e-r-o. Em férias, porque Agosto costuma ser o mês das férias, o futuro é um quadro pintado a cor-de-rosa. As pessoas só vêem felicidade em cada esquina. São como dois noivos casadinhos de fresco que esperam viver sob o efeito do romantismo a vida toda. Quando estamos de férias, todas as loucuras são toleráveis. Até esta.

    PS. Quando chegar o Inverno, ninguém vai estar bem com a vida que tem. Querem uma aposta?

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  • quarta-feira, setembro 03, 2003

    A Dois, Acontece: Acontece que a RTP2 vai-se chamar A Dois e será oficialmente apresentada amanhã, quinta-feira, numa cerimónia em que se espera toda a pompa e circunstância dos grandes momentos. Nuno Morais Sarmento, o ministro da presidência, será o padrinho da nova bênção, mas Acontece que a reformulação do canal não contempla um espaço cultural produzido pela própria televisão pública. Segundo uma notícia do jornal Público, o velhinho Acontece será substituído «por um magazine cultural de meia hora que será feito fora da RTP». Exacto, fora da RTP. É o serviço público que temos. No mínimo, Acontece...

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  • Já somos um país desenvolvido: O número é arrepiante: 27 mil professores correm o risco de ficar no desemprego por falta de colocação. É um dos problemas da actualidade e que reside no excessivo número de profissionais sedeados num mercado saturado pelas costuras. Todos os anos, o ritual repete-se e são milhares e milhares de jovens a concluírem as respectivas licenciaturas para começarem a dar aulas. Há um nítido excesso. Mas esta é apenas a ponta do iceberg. Uma das questões fulcrais reside no emagrecimento do número de alunos, o que significa que há menos gente a estudar. Em suma, há menos gente, nascem menos crianças em Portugal e a taxa de natalidade tem sofrido derrapagens consideráveis nas últimas décadas. Ora, se só os países desenvolvidos têm as mais reduzidas taxas de natalidade, será que já estamos no pelotão da frente da velha Europa?

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  • terça-feira, setembro 02, 2003

    Digam o que pensam: Não fiquem em silêncio, digam o que pensam. Este é o desafio que vos deixo. Comentem os posts, acrescentem o que for preciso, em suma, critiquem, sejam duros, cáusticos e meigos. Este blog nunca terá um só sentido, mas dois. As ideias e os escritos não partem só daqui, mas também daí. Os melhores comentários até serão publicados. Esvaziem parte da vossa alma no seguinte e-mail: remoinhos@hotmail.com. Este não será mais do que o vosso remoinho, como vem no campo superior esquerdo do ecrã.

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  • O tempo, uma estranha contradição: Não percebo a dinâmica do tempo. Às vezes avança como um danado, outras vezes é estranhamente lento. Hoje em dia, creio, o tempo avança mais depressa do que há uns anos. Sente-se que os dias passam por nós, que os meses se multiplicam, uns atrás dos outros, até à sucessão dos anos, numa espécie de piscar de olhos. A vida corre à medida que envelhecemos e sem nos apercebermos de nada. Daqui a pouco tudo termina, porque o tempo avança como um cavalo de corrida até ao fim da linha. Olho para trás e penso: quando era pequeno, o tempo era mais lento. As horas corriam devagar, os anos pareciam ter mais do que 365 dias. Era uma delícia. Só encontro uma explicação para isso: quando somos pequenos, queremos ser grandes o mais depressa possível e isso provoca uma certa ansiedade, que emperra o tempo. Agora, que somos grandes, queremos que ele seja lento, mas ele avança como um danado. Ou seja, o tempo nunca corre a nosso favor.

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  • Homens bomba americanos: O mundo ocidental em geral, os americanos em particular, censuram a máquina de guerra no Médio Oriente, onde os palestinianos se transformam em homens bomba para defenderem os seus princípios junto da comunidade israelita. Mas aquilo que os americanos condenam está-se a converter numa estranha medida para atingir os fins sem pensar nos meios. Foi notícia nos Estados Unidos que um grupo de assaltantes armadilhou um jovem distribuidor de pizzas para este assaltar um banco e assim persuadir quem nele se encontrava. Vestido de explosivos, o pobre rapaz foi pelos ares em pleno roubo. Ninguém se acreditou de que estava a ser vítima de uma manobra macabra e arrepiante. Os americanos já se inspiram não só naquilo que os palestinianos fazem, mas também nas artimanhas dos iraquianos. As voltas que o mundo dá.

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  • segunda-feira, setembro 01, 2003

    De onde sou: Do Porto. Da cidade do Porto. Por isso, deixo aqui o poema O Porto é só de Eugénio de Andrade. Usem e abusem destas palavras:

    O Porto é só

    O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde
    Forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas
    palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo
    espesso destes muros a insurreição do olhar.

    O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos
    dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para
    passarem os dias no café em frente, os olhos vazios,
    as lágrimas todas das crianças de S. Vítor correndo
    os sulcos da sua melancolia.

    O Porto é só uma pequena praça onde há tantos anos aprendo
    metodicamente a ser árvore, procurando assim parecer-me
    cada vez mais com a terra obscura do meu próprio rosto.
    Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos
    da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma
    pétala pouse aqui, por ser tão branca.

    Eugénio de Andrade, in Vertentes do Olhar (1987).

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  • As férias terminaram: Percebe-se que as férias de milhares de portugueses terminaram, que hoje é o primeiro dia de Setembro e o mês de Agosto só está na nossa memória para nos aquecer a alma naquelas tardes de frio que devem chegar. Não é só pelo regresso do trânsito ao centro da cidade que as férias acabaram nem sequer pelas praias desertas, onde o calor se afastou sem pedir licença. Basta ligar a televisão: o processo Casa Pia arranca para mais uma etapa decisiva depois de se ter caído no esquecimento por breves instantes. Não há dúvida, as férias terminaram.

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  • Que dependência é esta? Vivemos numa sociedade demasiado agarrada a instrumentos que abrem as portas para o outro mundo. Indo aos factos: precisamos dos computadores para viver, para entrarmos no ciberespaço, que mais não é do que a realidade dentro da realidade. Uma nova realidade. Cada vez mais, o ser humano ultrapassa esta barreira das coisas palpáveis para as coisas impalpáveis à custa de um simples clique, mas esta passagem de um campo para o outro, de saída de um espaço para outro, coloca-me uma série de dúvidas: que dependência é esta? Será dos computadores, da própria Internet ou das pessoas que aí conhecemos? Por que estamos tão dependentes deste mundo virtual e, ao mesmo tempo, real?

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