sexta-feira, outubro 31, 2003

Um abraço para o povo irmão: O Site Meter deste blog é como o algodão, não engana. Todos os dias, verifico que há vários leitores do outro lado do Atlântico que seguem atentamente o desenvolvimento destes remoinhos. É uma presença quase tão fiel como a nossa participação. Para o povo irmão, para todos os brasileiros que nos lêem, o nosso muito obrigado.
César e Maria.

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  • Terceira idade: As assimetrias entre as grandes cidades e os meios rurais ainda estão bem patentes no nosso país, especialmente no que diz respeito aos valores e à importância das pessoas no quotidiano. Por exemplo, nas grandes cidades os idosos são como automóveis já com muitos quilómetros, encostados ao fundo da garagem, neste caso colocados no canto da sala, cuja utilidade é muito questionada. A opinião deles é quase sempre desvalorizada, a paciência para os ouvir escasseia e muitos terminam a vida na cave, isto é, em lares de terceira idade como crianças abandonadas em orfanatos. Nos meios rurais é muito diferente. Há o culto pelos anciões, não há passo em frente sem se recorrer à sabedoria e à experiência do avô mais velho ou do vizinho mais coerente. Aqui os idosos são tratados como príncipes e têm um estatuto bem patente no topo da pirâmide social. Não consigo perceber esta diferença de tratamento sempre que se deixa o campo e se entra na grande cidade. Alguém me explica?

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  • Patamares: Quando já não se olha olhos nos olhos, quando se toca no ombro de alguém para pedir uma informação com o olhar virado para o lado errado, quando as palavras se atropelam umas às outras sem sentido nem convergência, quando se encena um estado de alegria para contagiar o outro, quando ao primeiro minuto o cenário cai como bomba, quando se volta atrás e o esforço de entendimento é empenhado e convicto, quando se sente que o chão que se pisa é um recinto de patinagem no gelo, sem patins, quando a intolerância se instala… só me restaria chorar por dentro e querer desistir do Mundo. Mas… um sinal de vitalidade chega; uma simples mensagem por telemóvel com meia dúzia de palavras verdadeiras, calorosas e de muito bem-querer.

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  • quinta-feira, outubro 30, 2003

    Tempo de poesia, sempre!:

    CDC / DCD

    A natureza em conjunto padece
    e como o sofrimento muito a cansa
    vinga-se em quem primeiro lhe aparece

    e para ser maior essa vingança
    já a futura morte transparece
    no pequenino rosto da criança


    Ruy Belo


    As Impossíveis Crianças

    Nesta manhã de outuno dos primeiros frios
    mais a caminho da velhice que da minha casa
    eu vejo-vos em roda todas a cantar
    Impossíveis crianças deixais-me brincar?


    Ruy Belo


    Relendo Daniel Filipe

    Desertar do céu deste inverno a andorinha
    bem pouco diz talvez não o notar
    Mas não a ver nem quando o sol domina
    ilumina o seu voo sobre o mar
    que terra tenho eu para mo perdoar?


    Ruy Belo

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  • Concepção de espaços: Os modernos tons da arquitectura de espaços interiores abandonaram os longos corredores labirínticos e viram-se, agora, para os espaços circulares. Esteticamente mais belos, com grande economia de espaço físico, maior amplitude visual nos seus interiores e muito em particular um aconchego indiscutivelmente superior.
    Um espaço comercial e recreativo recém aberto na zona onde resido tem, exactamente, estas características.
    É da seguinte forma que sinto este espaço quando nele me deixo mergulhar em momentos de lazer:
    São como abraços, sem ângulos, sem bicos, sem picos. Estendemos os braços e tudo enlaçamos. O olhar tudo abrange, o corpo tudo envolve, os sentidos, todos, despertam.
    São como que indivisíveis estes espaços feitos de transparências onde as passagens se entrelaçam, onde os sons se entrecruzam, onde a atmosfera se mescla.
    Sem rosa-dos-ventos, este espaço murmura-me sempre: «Aqui, não te sentirás perdida!»

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  • quarta-feira, outubro 29, 2003

    Outono, 2: Estar em casa, sem nada para fazer, olhar lá para fora e ver a chuva a colar-se ao vidro da janela como lápis inquietos em folhas de papel. Ter frio, pegar num cobertor, saber que aquela tarde é tão vazia como todas as outras, porque o vento dobra a esquina, porque o céu cobre-se de negro, porque o telefone continua em silêncio, porque as tuas palavras não chegam, porque a rádio repete os noticiários a todas as horas. Olhar de novo lá para fora e ver que o fim do dia traz com ele o caos que só a noite conhece: os carros em fila indiana ao longo da avenida, os faróis ligados, a chuva a pingar bem lá do alto. Ter frio. Um cigarro. As tuas palavras não chegam...

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  • Por que os apartamentos são tão caros: Contaram-me esta história e não resisto em partilhá-la como exemplo perfeito de como o nosso país é feito de oportunistas fáceis. Há indivíduos que ganham dinheiro na compra e venda de imóveis, sendo os grandes responsáveis pela inflacionamento dos preços que já estão pela hora da morte. Então é assim: compram vários apartamentos ainda em fase de construção e depois vendem-nos por valores superiores, retirando daí uma margem de lucro considerável. Isto provoca um aumento significativo do preço das habitações em determinados edifícios e afasta os compradores que precisam de um tecto para viver. Estas pessoas não adquirem imóveis por necessidade, mas por ganância de lucro fácil e até se dão ao luxo de montar empresas no ramo. O Estado fecha os olhos, porque ainda não há legislação própria capaz de terminar com esta revenda (os compradores não fazem escritura do imóvel e assim podem vendê-lo a qualquer momento). Barbaridade: um único sujeito adquiriu nove apartamentos no mesmo prédio!

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  • terça-feira, outubro 28, 2003

    O outro lado da Internet: O jornal Público tem um interessante artigo na edição desta segunda-feira sob o título «passaportes portugueses à venda na Internet» - aconselho vivamente para quem gosta de compreender os perigos do mundo virtual. É um drama que já sabia desde há uns meses para cá, porque há indivíduos, por exemplo, que se servem do falso estatuto diplomático para terem tratamento especial nos aeroportos. No entanto, há outro tipo de referências perigosas à deriva no ciberespaço, especialmente se forem ao encontro de uma criança inocente. Há sites que são autênticos manuais de ensino sobre engenhos explosivos. Exactamente, manuais de ensino sobre bombas sangrentas. Qualquer um de nós pode aprender a técnica suicida dos terroristas. É um drama, não é?

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  • Preguicite instalada: Os dias agora mais curtos e as noites mais longas convidam à preguicite. À "boa" preguicite, quero eu dizer.
    Para quem se pode dar ao luxo de não sair de casa, sair não é um programa apetecível, a não ser que o «programa» seja mesmo convidativo.
    Dou por mim na correria quando tenho que ir tratar de assuntos imediatos fora de casa.
    Dou por mim feita mulher atarefada, que causa aos outros a sensação de que tenho os minutinhos contados no meu dia-a-dia.
    O curioso é que tenho mesmo os meus minutinhos contados para usufruir dessa tal preguicite, merecida, que o conforto do meu recanto proporciona.
    Saio, corro e ao voltar a casa sinto o meu casulo à minha espera, com nostalgia e, nele, desfruto de um aconchego como se de um útero de mãe se tratasse.
    Gerir o tempo não é fácil para quem tem muito tempo.
    Paradoxo?!

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  • Atrás de um grande homem… : Há sempre uma grande mulher, diz-se! A inversa, quanto a mim, também é verdadeira.
    Acabo de ler no blog Pegada na Areia o testemunho de uma mulher ultrajada física e psicologicamente pelo seu próprio marido. Não constitui novidade esse tipo de notícia. Sempre me causou estranheza situações desse teor. Sempre me causou assombro a quase generalizada passividade das mulheres dentro de um casamento no que respeita a comportamentos de agressividade.
    A título de exemplo relato: Era muito nova a rapariga de quem vos falo, cujo marido se atreveu a dar-lhe uma bofetada num momento de maior exaltação. Em menos de 30 segundos ele, o marido, já tinha na sua cara o troco de duas boas estaladas, bem fortes, e um convicto “desaparece da minha vida”. Ela não fugiu dele. Eliminou-o pura e simplesmente da sua vida como quem queima o joio do seu terreno.
    Há que não deixar abrir precedentes.
    Quanto à inversa do dito acima: «Atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher», convicta estou de que um grande homem conduzirá, igualmente, à grandeza a sua própria mulher.
    É a minha voz que fala.

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  • Sem rosto: A Pegada na Areia deu o toque sobre os mendigos e depressa me veio à lembrança alguém que entra na esfera das tais pessoas que digo não terem rosto. Há mais de dez anos, uma mulher de pele queimada pelo sol percorre as ruas, de voz cada vez mais ausente, de mãos feridas e de cabelos despenteados. Foi perdendo as linhas do rosto, ficou endurecida pela passagem dos anos e já não se sabe se é homem, se é mulher, apenas tem a dimensão de um corpo. Simplesmente de um corpo. Pouco ou nada diz. Passa o tempo a observar aqueles que passam, guiando os enormes olhos castanhos em direcção dos passos firmes de quem avança na calçada. A mão mantém-se esticada e os dedos hirtos. Aquela mulher já não tem rosto, acreditem. Mas tem alma como todos os seres humanos. Aposto que tem uma história de vida mais rica do que a nossa.

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  • segunda-feira, outubro 27, 2003

    Natal: No Porto, já há centros comerciais que atraem clientes com enfeites típicos da época natalícia. Faltam cerca de dois meses para a grande festa, mas todos os anos o ritual repete-se: há uma tendência doentia por parte dos comerciantes em antecipar, o mais possível, o início do ritual das compras - uma situação dramática, porque tudo tem o seu tempo e tudo tem de acontecer na sua devida altura, sem empurrões desnecessários que podem descaracterizar aquilo que mais belo o Natal simboliza. Esta tendência pelo consumismo tem ganhado contornos alarmantes e parece um rio a correr sempre no mesmo sentido, de uma forma desenfreada, a transbordar água das suas próprias margens. Um dia destes estaremos na praia, em pleno mês de Agosto, a ler o jornal e a olhar o mar enquanto um panfleto de uma conhecida loja comercial anuncia o último grito de não sei o quê para o Natal.

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  • domingo, outubro 26, 2003

    Ilustração de «Sexta-feira»:

    E por vezes

    E por vezes as noites duram meses
    E por vezes os meses oceanos
    E por vezes os braços que apertamos
    Nunca mais são os mesmos. E por vezes

    encontramos de nós em poucos meses
    o que a vida nos fez em poucos anos
    E por vezes fingimos que lembramos
    E por vezes lembramos que por vezes

    ao tomarmos o gosto aos oceanos
    só o sarro das noites não dos meses
    lá no fundo dos corpos encontramos

    E por vezes sorrimos ou choramos
    E por vezes por vezes ah por vezes
    num segundo se evolam tantos anos.

    David Mourão-Ferreira

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  • Correio do leitor: A segunda colaboração directa de uma leitora do Remoinhos. Trate-se de um e-mail que recebi ontem, já tarde no meu endereço pessoal, e que transcrevo.

    A Realidade afasta-nos inexoravelmente da Escrita. Mas hoje é um dia especial! Houve um Homem muito importante (para mim) que completou hoje 83 anos de vida. A lucidez e a inteligência que sempre o acompanharam estão hoje um pouco ensombradas pela passagem degenerativa do Tempo... No entanto, o seu sentido de humor ainda lhe permite afirmar que talvez tenha ainda pela frente 38 anos de vida. Sabedorias e ironias que só a idade permitem.
    É esta reflexão que quero aqui deixar…E é também uma homenagem a alguém que sempre encarou a Vida desta forma… CARPE DIEM! Um Exemplo, também, se o quiserem e souberem seguir…!


    Mais uma vez o nosso reconhecimento, L…

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  • Sexta-feira: Na sexta-feira era para ter escrito um post sobre uma consumição de alma, uma ausência, a dura realidade de dizer adeus a um casal amigo. Adiei até hoje, porque há adiamentos que são necessários, há palavras que se podem evitar no presente e só escrevê-las no futuro. Naquele jantar, houve momentos em que senti o tempo a escapar-se do restaurante como a areia do deserto a sumir-se dos dedos. A percepção de que aqueles minutos podiam ser os últimos; a percepção de que não se sabe quando será a próxima vez; a percepção de que a partida é quase uma fuga inadiável; a percepção de que os abraços são mais do que gestos corporais. Esta semana, a B. e o U. regressam à Alemanha e depois partem para os Estados Unidos, onde iniciam mais uma etapa após muitas outras. Há pessoas que não passam pelas nossas vidas, ficam em nós. A B. e o U. nunca passaram por mim, estão em mim.

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  • sábado, outubro 25, 2003

    Ou 8 ou 80: Para os que me conhecem, nada estranharão. Os meus rompantes… Ou tudo, ou nada. É que sou assim mesmo. Não é no meio que encontro as minhas virtudes. É nos extremos, sim. Ontem nada escrevi. Hoje, «tirei o dia» para sentir a vossa companhia. Expressem-nos, como muito bem quiserem, os efeitos desta «companhia».

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  • Ditado popular:

    Entre um frade e entre um burro,
    Há certa conformidade:
    Ou o frade é pai do burro,
    Ou o burro é pai do frade.

    (Sem segundos sentidos, por favor…)

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  • O meu Bairro: O meu bairro tem canteiros de papoilas habitados por borboletas multicolores. O meu bairro tem ninhos de pardais que moram em pinheiros mansos. O meu bairro tem crianças nos jardins que brincam e riem ao som de concertinas tocadas por doces velhinhos de cabelos cor de prata. O meu bairro tem vielas estreitas iluminadas por candeeiros com luzes amarelas que se confundem com a própria luz da lua. O meu bairro tem sardinheiras perfumadas em cada beiral. O meu bairro tem amantes que no escuro da noite se entregam em devaneios aos seus mais belos prazeres. O meu bairro tem um cheirinho a alecrim que refresca o romper de cada madrugada. No meu bairro o vento sopra cantando hinos de amor. No meu bairro as gotas de chuva são cristais que enfeitam todos os sonhos. No meu bairro não mora a tristeza, o infortúnio, a renúncia e o desalento. No meu bairro não há espaço para caras feias com olhos postos no chão. No meu bairro moram todas as fantasias que povoam a minha mente. No meu bairro não mora qualquer um. No meu bairro sou Rainha e Vassalo.

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  • Está a fazer-se cada vez mais tarde (2): «Com este romance epistolar, Tabucchi renova uma ilustre tradição narrativa, subvertendo muito embora os códigos e pervertendo o género. Com efeito, apercebemo-nos a pouco e pouco que alguma coisa «não bate certo» nestas missivas: a paisagem parece resvalar sob os nossos olhos, os destinatários parecem errados, os remetentes desapareceram e os tempos inverteram-se, como se o antes e o depois tivessem trocado de posição e as cartas se antecipassem ou se atrasassem relativamente à própria mensagem que transmitem; como se os destinos dos homens, como manda o Mito, continuassem desencontrados, como se as palavras se perdessem no ar e as pessoas se extraviassem no labirinto das suas curtas existências. Como se a vida fosse afinal um filme perfeito e impecável em que só a montagem falhou».
    (Introdução da Editora.)

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  • Está a fazer-se cada vez mais tarde: É este o título do último livro do escritor italiano Antonio Tabucchi, publicado pela Dom Quixote e à venda há menos de uma semana.
    Trata-se de um «Romance em forma de cartas».
    Antonio Tabucchi é uma das vozes mais representativas da literatura europeia e um autor bem conhecido do público português. Autor de romances, contos, ensaios, reportagens, peças de teatro, os seus livros estão traduzidos nas mais diversas línguas e muitos dos seus textos inspiraram conhecidos realizadores teatrais e cinematográficos. ( in contra-capa desta obra).
    Antonio Tabucchi é um dos meus autores, vivos, de predilecção.
    Recomendo, vivamente, a sua obra.

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  • sexta-feira, outubro 24, 2003

    O seu remoinho: É uma das inovações deste blog. Desde o primeiro dia, sempre considerámos importante a interactividade entre nós e os nossos leitores e vice-versa. Por isso, resolvemos dar mais um passo em frente para encurtar a distância entre todos aqueles que seguem as nossas palavras e sentem de perto os nossos remoinhos. Agora, no final de cada post há uma caixa - «O seu remoinho» - para onde poderá escrever o seu comentário àquilo que leu, àquilo que sentiu ou até para dizer que não concorda com nada do que transmitimos. Esse será o seu espaço e também o nosso, porque tudo na vida tem um direito de resposta. No canto superior esquerdo tem o nosso e-mail: remoinhos@hotmail.com.

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  • A pior de todas as guerras: Segundo rezam as notícias, a taxa de suicídio das tropas americanas instaladas no Iraque aumenta assustadoramente. Vários são os soldados que acabam com a própria vida porque não aguentam seis meses de isolamento total, as incontornáveis saudades da família e ainda o medo do que pode acontecer na próxima missão (as emboscadas proliferam e provocam mortes bárbaras). O problema de um conflito militar vai muito mais além do que o próprio inimigo. A pior de todas as guerras é o Homem ter de lutar contra ele próprio, contra os seus medos, contra as suas agonias e até contra os seus ideais. Não concordam?

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  • quinta-feira, outubro 23, 2003

    As aparências enganam: Há dias, quando parti de Portugal, apanhei um táxi em direcção ao aeroporto e confirmei aquilo que costumamos dizer em relação a este ou aquele: as aparências enganam. Quando entrei no carro, assustei-me com o taxista: homem aparentemente estranho, gosto estético muito duvidoso, cara a inspirar pouca confiança. Mas depressa constatei que a minha primeira leitura era muito precipitada. Disse-me que podia escolher o caminho em direcção ao aeroporto, foi simpático, cordial, conversador e educado. Aquele homem pareceu-me ser boa pessoa. Mas passou-me tudo pela cabeça quando entrei naquele Peugeot.

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  • Diário de bordo: De volta, o nosso César não dá tréguas. Um verdadeiro soma e segue, no melhor dos sentidos.
    Na realidade, uma iniciativa nascida pela paixão da «escrita», é assim mesmo. A inquietação por uma continuidade permanente, a insatisfação por aquilo que já se escreveu, a ansiedade pelo que poderá vir a escrever-se.
    Sozinha nesta tarefa, não iria longe.
    É bom sentir-me, de novo, acompanhada!

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  • Quando é que aprendemos?: O 11 de Setembro foi há dois anos, há quem diga que o Mundo nunca mais voltou a ser o mesmo, mas os mesmos erros de palmatória acumulam-se nos aeroportos. É uma situação preocupante, porque há ainda quem transporte objectos contundentes nas cabines dos aviões, uma prova de que a negligência continua a ser praticada pelas autoridades (mas também por parte dos passageiros). O relato fala por si. Ontem, quando me preparava para entrar no avião e regressar a Portugal, um amigo meu verificou que tinha um corta-unhas num dos bolsos do casaco. Não o transportava com qualquer intenção menos própria, aliás, nem sabia que o levava consigo, mas é um facto que passou pelo detector de metais e nenhum dos polícias o chamou à atenção para nada. Temos de acordar do pesadelo...

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  • Porta entreaberta, 2: De regresso. A porta ficou entreaberta e estou de novo neste sótão depois de terem terminado - por enquanto - as obrigações profissionais. Entro pelo mesmo sítio por onde já entrei, através da porta que ainda continua entreaberta - porque nunca se sabe se o futuro tem reservado mais uma viagem inesperada. Tiro a cadeira do sítio, ligo o computador e sinto-me pronto para mais um baile até raiar o dia. As saudades foram tantas que ontem não resisti e puxei por outra cadeira e liguei o mesmo computador só para estar outra vez aqui (o Remoinhos teve o seu post mais matutino de sempre - 07,32 horas). Soltei os dedos por breves instantes e matei a fome que me atormentava. Sei que a criança está bem, porque a Maria tratou-a como ninguém. Nunca tive dúvidas das suas prosas.

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  • quarta-feira, outubro 22, 2003

    A quem já aconteceu... ?: Falando animadamente sobre literatura, preferências de autores, estilos de escrita e mais, o nosso diálogo estava a ficar naquela temperatura bem morninha, que não apetecia nada deixar arrefecer.
    Um dos autores colocados na mesa foi José Saramago.
    Opiniões mais ou menos convergentes sobre este autor levaram-nos, a certa altura, ao seguinte ponto: o meu parceiro de conversa, esboçando um sorriso meio cúmplice, confessou-me: - Não me atrevi a acabar a leitura da obra o Memorial do Convento, por saber, de antemão, que o seu final não salvaria os meus heróis.
    Nunca tal me ocorrera.

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  • Todas as cidades: Todas as cidades parecem a minha cidade. Quando a noite cai, quando os passeios ficam desertos e as tuas palavras não chegam a lado nenhum, quando cada esquina abre uma porta para coisa nenhuma. À noite, todas as cidades deixam de ser elas próprias e são iguais a todas as outras. Porque o silêncio entra pelas janelas vindo do vazio e cada minuto é a repetição contínua do anterior: o escuro, a luz dos candeeiros, nada de nada, um automóvel a passar; o escuro, a luz dos candeeiros, nada de nada, um automóvel a passar...

    PS. Ainda não estou na minha cidade. Milhares de quilómetros separam-me da porta que deixei entreaberta, mas hoje apeteceu-me entrar. Não abri o computador, a cadeira continua no sítio, tal e qual como a deixei no meu quarto. Mas hoje precisava de entrar no meu sótão por breves minutos. À noite, todas as cidades são iguais umas às outras. Não resisti.

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  • Mundo Virtual, Mundo Real: Nem sei como começar. Dirão vocês, pelo princípio.
    Um caso, quanto a mim, verdadeiramente inédito e impensável aconteceu.
    Recebi uma chamada telefónica de alguém que não conheço pessoalmente, com quem nunca tinha falado, que até imaginava desconhecesse a minha existência e de quem apenas tinha ouvido falar, muito por alto, através de um amigo que nem sequer era dos meus relacionamentos mais estreitos. Desde sempre sentira uma enorme simpatia e consideração por ele.
    Chorando desnorteadamente e em total desalento, informou-me do falecimento do seu companheiro de vida. Falou comigo com um tal destemor como se eu fosse sua amiga de longa data.
    Acreditem que fiquei sem pinga de sangue.
    Impunha-se-me o dever de tentar suavizar a enorme desesperança e amargura daquela senhora.
    Escutei-a durante 30 minutos sempre num crescendo de dor que já me trespassava, também. O Além trouxe-me a necessária inspiração para conseguir transmitir àquela alma, desfeita, um pedacinho de serenidade.
    O amigo de quem falo, companheiro de vida da referida senhora, e a quem presto a minha homenagem, tinha «aparecido na minha vida» pela porta do Mundo Virtual.
    O seu desaparecimento surgiu-me, inesperadamente, pela cruel porta do Mundo Real.
    Como estes dois Mundos se entrelaçam. Onde começa um e acaba o outro?

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  • Astenia outonal: Desta vez é a doer. Nada consegui escrever, aqui, ontem. O cérebro vazio, preocupações algumas, e o sentido de compromisso e responsabilidade morais a apertarem-me a consciência.
    Parece de propósito. O César ausente e eu em «ausência».
    Mas isto não fica assim… não me deixo render à primeira.

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  • domingo, outubro 19, 2003

    E agora é que são elas: Pois é… o César tem de se ausentar e cá fico eu com a criancinha nos braços.
    Quem me ajuda?
    Sim… você aí que está agora a ler este post não quer dar uma mãozinha?
    Ai que grata lhe ficaria!
    E se fizéssemos uma surpresa ao César de forma a quando ele voltar, encontrar a “caixinha do correio” do Remoinhos cheiinha até transbordar. (Estou a pedir pouco, não é?)
    Venha daí… salte… e mande uma “cartinha”. Valeu?!

    P.S. Repare bem; no seu lado esquerdo encontra "o seu remoinho". É seu, sim!

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  • sábado, outubro 18, 2003

    Porta entreaberta: Pois é assim: sem dramas, sem receios, de forma adulta e destemida, sou obrigado a deixar este sótão por alguns dias. Obrigações de ordem profissional fazem-me arrumar a cadeira, desligar o computador e abandonar este espaço, que é o meu cantinho de recordações e de olhares indiscretos. Saio e deixo a porta entreaberta - porque nunca se deve fechar a porta completamente nem que seja só por uns dias. Vou estar fora do país. Mas volto...

    PS: Também sem dramas e sem receios, o Remoinhos não vai ficar sozinho como uma criança em casa sem saber que o fogão da cozinha é o primeiro perigo à espreita. Fica nas mãos da Maria. Por isso, sei que esta criança nunca irá pôr o pé fora do quarto. Até ao meu regresso.

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  • sexta-feira, outubro 17, 2003


    Tempo de Poesia:



    E alegre se fez triste

    Aquela clara madrugada que
    Viu lágrimas correrem no teu rosto
    e alegre se fez triste como se
    chovesse de repente em pleno agosto.

    Ela só viu meus dedos nos teus dedos
    meu nome no teu nome. E demorados
    viu nossos olhos juntos nos segredos
    que em silêncio dissemos separados.

    A clara madrugada em que parti.
    Só ela viu teu rosto olhando a estrada
    por onde um automóvel se afastava.

    E viu que a pátria estava toda em ti.
    E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
    que fez tão triste a clara madrugada.


    Manuel Alegre

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  • Outono, 1: As árvores pingam folhas amarelas em direcção da pedra cinzenta e pressente-se uma aragem gelada mal a noite cai. No ar, o pó seco é o respiro da natureza: assiste-se a um misto de fogo pálido e de castanho suave a entrelaçar-se no passeio até os nossos olhos se perderem um no outro. O vento empurra as folhas secas para a berma da estrada e ouvem-se todos aqueles movimentos como se o céu e a terra parassem por segundos e tudo se resumisse àquele som, por vezes quente, outras vezes frio, tal e qual a tua voz a escorrer nos meus ouvidos. Assim, bailamos. Como as fotografias antigas nos conduzem a danças lentas em bosques escuros.

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  • quinta-feira, outubro 16, 2003

    Eu desconfio deles: Este tema pode parecer fora de tempo, é um facto, mas apetece-me dizer que desconfio deles. Desconfio da Academia Sueca que há poucas semanas atribuiu o prémio Nobel da paz à iraniana Shirin Ebadi, a primeira muçulmana a ser galardoada por esta prestigiada instituição. Mais do que o talento dos intervenientes ou a dedicação cega às causas, a Academia Sueca deixa-se contagiar por questões de ordem política e as escolhas são, muitas vezes, parciais e geram algum ruído de fundo por parte da opinião pública. Estas linhas representam um singelo desabafo. Esta era a altura certa e o momento crucial para distinguir o Papa João Paulo II, que esta quinta-feira completa 25 anos de pontificado e tem o tempo contado pelos dedos da mão: a vida foge-lhe. Mas, numa altura em que o barril de pólvora seca continua a rebentar no Médio Oriente e a Guerra no Iraque foi um dos alvos do mundo ocidental, ficava bem distinguir um árabe - até porque há coisas que são politicamente correctas e bastante óbvias. É o caso.

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  • quarta-feira, outubro 15, 2003

    A vantagem de ser português no Mundo: Ainda ontem, recordei esta história à Maria, hoje vou partilhá-la com vocês, porque ser português no Mundo tem as suas vantagens. Em Dezembro do ano passado, questões de ordem profissional levaram-me até Paris, onde passei quatro maravilhosos dias bem perto da Torre Eiffel. No regresso, uma surpresa. Estava no aeroporto de Orly a fazer o check-in quando as autoridades suspeitaram que escondia uma faca (obviamente que se tratava de um lapso) na minha bagagem de mão. Uma mulher polícia depressa se dirigiu a mim com cara de poucos amigos, mandou-me abrir a mala, ordenou-me que tirasse tudo o que tinha lá dentro. Fê-lo num tom de voz rude, austero e implacável. Mas depressa mudou de tom. Assim, de repente, em breves segundos. Quando sentiu - note-se bem, «sentiu» - que era português mudou literalmente o comportamento. Apresentou-se. Pediu-me desculpas. Disse-me que tinha havido um engano. Ela também se sentia portuguesa. Nasceu em França, mas era filha de emigrantes. Também acho que se chamava Maria...

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  • terça-feira, outubro 14, 2003

    Os primeiros frutos: Recebi, ontem, de uma amiga virtual e no meu endereço pessoal, o seguinte e-mail que me encheu a alma.
    Reparem na sensibilidade e arte de bem escrever desta senhora.

    «Lembrei-me, agora, nesta noite mais calma, de espreitar os teus (vossos) remoinhos. Já antes, tinha ficado muito bem impressionada pela qualidade dos textos que ali são expostos, a quem os quiser ler. Agora, que lá voltei, apeteceu-me escrever umas linhas porque é estimulante ver que alguém se entrega, quotidianamente, a este exercício, quase de exorcismo, de escrever. São impressões, memórias, reflexões, críticas, sempre actuais e actualizadas.
    Se eu fosse capaz de escrever assim, como a água escorre todos os dias, como os dias se vão sucedendo, diria o seguinte:
    Neste ritmo alucinante do dia-a-dia, ainda há quem, disciplinadamente, se senta, para anotar o quotidiano, para evidenciar o que de importante foi acontecendo, ou foi sendo recordado… Breves anotações que deixam um rasto de nós no Tempo. Voltar atrás é reler o que foi escrito… Antecipar o futuro é alinhavar as frases que vão ser escritas amanhã. Não será a “inscrição” que a escrita deixa no papel. Mas é a exposição que a virtualidade permite… Não tem limites!!!
    Aqui fica um breve testemunho de alguém que, modestamente, passou ao lado das vossas palavras.»


    Bem hajas, L… !

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  • Chega de bater no ceguinho!: Que estamos na cauda da Europa em determinados aspectos não é novidade para ninguém, porém há formas e formas de enquadrar os pontos fracos da realidade portuguesa. Outros, nem sequer são assim tão fracos, mas já ganham dimensão desmedida em função da própria realidade. Veja-se o exemplo: a revista americana Time, na sua edição europeia desta terça-feira, considera que Bragança «é o novo bairro europeu de prostituição» brasileira. Uma afirmação exagerada, se compararmos a pacata e pequena cidade transmontana com a grandiosidade de Amesterdão, onde o bairro vermelho é um dos maiores pólos de prostituição do Velho Continente, ou então com Barcelona, cujas Ramblas fazem as delícias de muitos turistas à procura de sexo fácil. Bragança nem sequer é um bairro, mas uma viela sem saída à beira destes exemplos.

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  • Este espaço é igualmente vosso: Confiem, caros leitores!









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  • segunda-feira, outubro 13, 2003

    A ilusão de todos nós: Esta manhã, em conversa com um grande amigo meu, ouvi algo que me sensibilizou muito e que explica, em parte, a forma carregada como muitas vezes encaramos o mundo. Por causa disso, nunca temos tempo para nada, nem para nós nem para aqueles que nos querem muito. Indo directamente ao assunto, ele disse-me isto: «Profissionalmente, vivemos numa ilusão. A nossa ilusão é pensarmos que um dia o nosso trabalho será recompensado, por isso, corremos que nem doidos. Parecemos aqueles ratinhos amestrados que andam em rodas fixas e nunca saem do sítio».
    César, o ilusionista, apresenta-se assim à sua plateia. Será que mereço palmas?

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  • domingo, outubro 12, 2003

    Os arrogantes detentores da verdade: Ainda há pouco fui confrontada num restaurante de amplo espaço e arejamento com a seguinte situação. Acendi um cigarro e comecei a fumá-lo. Um homem com uma idade a rondar os 50 anos, que jantava com um casal e uma menina, talvez de 6 anos, numa mesa perto da minha, começou em voz bem audível a criticar os fumadores, e acintosamente as mulheres, alegando que devia ser proibido fumar em restaurantes.
    Sempre fui defensora dos espaços públicos vedados a fumadores.
    Mais, sempre fui defensora do direito e exigência a espaços reservados a não fumadores em restaurantes.
    Contrapunha o cavalheiro, a título de acto cívico, que detestando usar cinto de segurança quando conduz, o que é obrigado a fazer por lei (lei estúpida, afirmava), pois sentindo-se no direito de dispor da sua vida como bem entendesse, declarando, também, não considerar qualquer perigo para terceiros tal comportamento, citou em tom de intensa crítica o seguinte caso: uma senhora relatou-lhe o facto de em plena noite, numa auto-estrada em que conduzia a 190 km/hora, se ter atrevido, em consequência de um furo no pneu do seu automóvel, a parar o veículo na berma e ter ela mesma, de seguida, mudado o pneu. Veementemente arrogante dizia que a senhora deveria ter chamado um reboque (expondo-se aos riscos de ficar, sabe-se lá por quanto tempo, sozinha e em plena noite numa auto-estrada), e nunca estacionar na berma. Isso é crime (!?).
    Voltando um nadinha atrás, tivesse o cavalheiro dito, muito simplesmente, que o fumo do meu cigarro o incomodava, eu de imediato o teria apagado, gesto que me trouxe alguma hesitação e pelo qual não optei por não gostar de frontalidades camufladas.
    Como bem podem perceber, fiquei com a impressão de que as mulheres, em alguns aspectos, são mais criminosas, na sociedade portuguesa, do que os homens. Será?
    Corrijam-me, contestem-me, reajam.
    Muito gostaria eu disso!

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  • No meu baú: Eu não tenho um sótão. Eu tenho um enorme baú. Nele escondo, tapo e destapo, arrumo e desarrumo vivências, emoções, alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, conquistas e perdas, enfim… mil e um fragmentos dos acontecimentos que me deixaram um registo indelével.
    Muito brinco eu neste meu precioso baú. Por vezes está tão cheio que nem a sua tampa consigo fechar. Direi, mesmo, que a sua tampa permanece entreaberta de forma a permitir-me, sem esforço, espreitar uma desordem que mantenho intencional, porque as arrumações certinhas morrem asfixiadas.
    Deste meu baú, tirarei, prazenteiramente, sempre que dele me lembrar, pedacinhos muito ricos que partilharei convosco. É uma promessa, sim!

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  • «Pela boca morre o peixe»: Pois… brinquei com o post do meu «partenaire», o aqui e acolá (ver 7 de Outubro), e o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Ontem não marquei presença aqui no Remoinhos, por total impossibilidade. Andei perdida na minha cidade.
    Avistando de carro, a escassos metros, o centro comercial (o maior da Península Ibérica), onde pretendia adquirir novo equipamento de informática, demorei uma hora e trinta minutos até descobrir o seu respectivo acesso por carro. Um desespero, acreditem. E eu que sempre tinha jurado nunca pôr os pés no dito centro comercial - detesto gigantismos e multidões - , caí na esparrela que nem ginjas. Evidente que foi uma boa amiga quem me sugeriu o tal gigante para o fim em vista.
    Como pela boca morre o peixe, não reafirmarei que ali nunca mais voltarei a pôr os pés, a não ser amordaçada e de olhos vendados, mas que nunca mais lá voltarei voluntariamente, ai isso não!

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  • Maré negra: Porque a maré está mesmo negra e já se caminha na lama, e também porque o Remoinhos só denuncia verdades nuas e cruas, aqui está o exemplo de como este país caminha desnorteadamente para um estado de inferioridade. Para se perceber bem a dinâmica do post anterior, há que ler este artigo do jornal Público, publicado ontem, 11 de Outubro, da autoria da jornalista Isabel Leiria.
    Não deixem passar em branco!
    César e Maria

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  • sábado, outubro 11, 2003

    No ralo da banheira: No ralo da banheira é por onde está a entrar aquilo que melhor este país foi construindo ao longo dos séculos. Nestes casos, a culpa morre quase sempre solteira: ou é a transformação dos tempos; ou é a ignorância dos intervenientes. Das duas, uma. Mas vou pela segunda, embora espero não me estampar de frente. Indo aos factos - belisquem-se se quiserem, mas é verdade - há escolas que adoptaram manuais de português em que os alunos têm páginas e páginas com conteúdos destinados ao Big Brother e à enxurrada de telenovelas que invadem os canais de televisão. Têm questionários sobre o assunto; imagens referentes àquelas temáticas; etc., etc., etc. Perante esta barbaridade, faço minhas as palavras de um ilustre desconhecido que uma vez se cruzou comigo na barbearia onde costumo cortar o cabelo. Dizia ele, «hoje em dia o que a televisão mostra e os livros ensinam é uma verdadeira masturbação de cultura». Tal e qual.

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  • «On n'oublie rien»: Já passaram 25 anos (9 de Outubro), sobre a morte do grande poeta e cantor Jacques Brel.
    Que saudade…
    Desde sempre, este enorme cantor de língua francesa e de origem belga exerceu sobre mim um fascínio quase misterioso. Ainda mal dominava a língua francesa, e pouco entendia a tradução das suas palavras cantadas, já me deixava prender em suspenso por tamanha voz, encaixada em poemas e melodias, de sua autoria, que soavam dentro de mim como verdadeiros hinos dirigidos à sociedade e aos afectos, e que ouvia repetidas e repetidas vezes sem me cansar.
    Permitam-me a ousadia de uma tradução livre de uma parte de um dos seus maiores hinos. A canção, «Ne me quittes pas».

    «Nunca me abandones! Não quero mais chorar! Nada mais quero dizer! Esconder-me-ei a observar-te, dançando e rindo, sempre dançando e depois rindo. Deixa-me tornar-me na sombra da tua sombra… na sombra da tua mão… na sombra do teu cão…e não me deixes nunca.»

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  • sexta-feira, outubro 10, 2003

    Aquele cheiro: Aquele cheiro persegue-me como a voz de alguém no meio do monte, como a melodia de uma música suave numa sala banhada pelo sol. Já passou um ano, mas aquele cheiro continua a fazer parte de mim. Aparece-me, vem do vazio, preenche-me, depois desaparece transportado pelo vento e sem deixar rasto. Nada diz. Tudo transmite. Aquela viagem à Grécia ficará para sempre marcada por aquele cheiro, a mistura de todos os cheiros num só, uma espécie de simbiose de aromas exóticos, raros e estranhos, num só aroma que pode ser grave ou agudo, doce ou salgado, azul ou vermelho. Era espesso, sim, como as vozes dos velhos contadores de histórias. Era fino, também, como as veias dos riachos nos sulcos da terra. Aquele cheiro respira por mim.

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  • A «loucura»: Todos os dias o ritual repete-se. Enquanto almoço vejo o telejornal, saboreio os alimentos e registo a prática real do mundo. Houve algo que me chamou particularmente a atenção: um doente esquizofrénico está internado num hospital de «loucos» há 19 anos. Passa o tempo da melhor maneira possível, entre a pintura lúdica e a escrita poética. É assim que vence o passar das horas e combate a infelicidade da doença como qualquer pessoa que precisa de algo para preencher o vazio de cada minuto. Leu um poema. Bonito poema. Fantástico poema. O jornalista pergunta: «Onde vai buscar tanta inspiração?» Ele responde. Simples. Honesto. Sereno. Transparente. «À minha alma». Silêncio. A «loucura» deve ser sempre escrita entre aspas. Não vos parece?

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  • quinta-feira, outubro 09, 2003

    Por que os dias me enganam? Desabafos: Não sei porquê, mas o mundo prega-nos muitas partidas. Esta dinâmica de como tudo é feito, o ritmo das horas, dos dias, das semanas, dos meses e dos anos é uma autêntica rasteira que se atravessa no nosso caminho. Assim, sem ninguém dar por ela. Sinto isso. Sinto isso porque hoje, para mim, não é quinta-feira, mas sexta. Não sei porquê. Sinto no ar aquela euforia típica das sextas-feiras à tarde em que tudo um pouco é permitido. Até os excessos. Já não é a primeira vez que isto me acontece. Sinto que os dias andam trocados, o que me confunde de quando em quando.

    PS: Só espero que amanhã não seja domingo à tarde. Vá de recto...

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  • Pois acreditem, se quiserem: Ontem, passei o serão a falar com a Maria sobre coincidências. Analisávamos algumas, graças a um maravilhoso portal que descobrimos na Internet, enquanto trocávamos ideias sobre determinados aspectos que não podem ser simples coincidências. Têm de ser mais do que isso. Adormeci e acordei. Mal saí da cama, veio-me à cabeça o seguinte: quando é que aquele fulano (é uma figura conhecida e do meu meio) faz anos? Cheguei ao trabalho, abri os jornais como faço sempre antes de começar a fazer seja o que for, quando dou de caras com o dito cujo. Deu entrevistas a dois jornais. Faz 40 anos. Hoje. Só não lhe dou os parabéns, porque não gosto dele. Não é doutor?

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  • O nosso círculo: Não é preciso estar nas mãos do mais hábil hipnotizador para se fazer uma regressão. A vida consegue-nos fazer recuar no tempo à medida que vamos crescendo, especialmente quando entramos na recta final da nossa existência. É aí onde voltamos a ser meninos, onde conseguimos fazer as mesmas birras de criança e temos os mesmos amuos. Até corremos o risco de urinar nas calças como os bebés, por isso, há quem tenha de usar fraldas. Na terceira idade os pontos de contacto com a infância são enormes, o que não deixa de ser curioso. A vida é um enorme círculo e quando estamos perto do fim chegamos ao ponto de partida. Tal e qual.

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  • quarta-feira, outubro 08, 2003

    Há sempre uma saída airosa: Pela porta, pela janela, pelo tecto, trespassando a parede ou mesmo furando o chão, meu caro amigo, «o ali e o acolá», são ultrapassáveis, reconheça...
    Saia de casa sem receios mas... não passe por baixo de escadas, escadotes ou andaimes... fuja a sete pés de gatos pretos... cumpra a preceito as normas das superstições e o resto que se «licse»...
    (Vou ser despedida do Remoinhos, ai vou, vou...)

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  • «Tou xoné!»: Mandei vir um bife grelhado só com salada, hoje, ao meu jantar. O meu comparsa de repasto, que não vai em dietas, alambazou-se com um belo bife apinhado de molho «béarnaise». Olhei, invejei e aparentemente nada pensei.
    Disse, aparentemente.
    O inconsciente funciona tão bem…
    Eis senão quando, e como gesto um pouco provocatório, ou melhor, de pura brincadeira e até usual, comecei a roubar batatas fritas, embebendo-as no molhinho «béarnaise» do «adversário».
    Reacções, nenhumas. Nada de grave, por enquanto.
    Embrulhada, para não dizer perdida, nos meus pensamentos que devem correr à velocidade da luz (será exagero?), dei por mim a roubar batatas fritas e a empapá-las, a seco, no fundo do meu prato que nada continha a não ser o bifito grelhado mais uma rodelita de limão. Embebia, embebia, e os palitos das batatas nada sugavam. Só disso me apercebi ao verificar que o gostinho «béarnaise» não estava lá…
    Larguei-me em gargalhadas loucas dizendo: «Tou xoné!», quem me salva?
    É que eu gosto mesmo muito de molho «béarnaise».
    Leiam, apaguem, esqueçam e… vão-se habituando…

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  • terça-feira, outubro 07, 2003

    O ali e o acolá: Poucas são as pessoas que sabem escrever como também poucas são aquelas que sabem falar. Ou explicar. Parênteses: dinâmica de discurso, fluência, capacidade de expressão. É confuso quando queremos ir a qualquer lado, perdemo-nos no caminho e recorremos a alguém que apenas diz «chega ali e vira para acolá». É uma sensação de angústia. «Mas acolá como? Para a direita?» A resposta é muda: «Para ali. O senhor faz desta maneira». E mostra com a mão à medida que estica os dedos. É sempre assim quando me perco pelos labirintos deste país. Sou obrigado a recorrer a alguém, mas fico sempre a seco. Ainda mais confuso. Há dias em que é melhor ficar em casa e não entrar por atalhos. Podemos sair por ali e entrar por acolá. É muito perigoso. Depois como saímos dali?

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  • A moda que mata: O mundo das roupas, do culto das cores e das formas, também pode representar um cenário assassino para quem faz disso um modo de vida. Uma mulher que é imensamente bela durante um certo período de tempo e funciona como um ícone da própria moda será sempre um corpo dorido e uma mente doente quando as rugas a transportarem para a inactividade total. Aquela mulher, aquele modelo da perfeição corporal, que inspirava estilistas atrás de estilistas e cujas roupas tinham um realce divino, perderá parte da sua identidade, ao ver-se, de um momento para o outro, distante de um passado que foi seu por direito próprio. Este é o risco das profissões apenas destinadas àqueles que pensam ser eternamente jovens. Quando crescem, estão mortos.

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  • segunda-feira, outubro 06, 2003

    A Moda: Escravatura ou prazer?
    Muito especialmente para as mulheres, o rigor das modas pode ser um tanto tormentoso... ou não?! Mudança de estação do ano, mudança do «último figurino», etc., etc., etc...
    Ai... deixem-me respirar fundo!
    Quem não gosta de se apresentar de acordo com o «último grito» da moda? Eu não! Quantas modas já rejeitei sem um pestanejar de olhos. Para mim, neste aspecto, o «hábito não faz o monge». Eu dito as regras das minhas «modas»!
    Esta curta introdução presta-se à transcrição de um delicioso poema de Nicolau Tolentino (1740-1811), refinadamente satírico.

    Chaves na mão, melena desgrenhada,
    Batendo o pé no chão, a mãe ordena
    Que o furtado colchão, fofo e de pena,
    A filha o ponha ali, ou a criada.

    A filha, moça esbelta e aperaltada,
    Lhe diz coa doce voz que o ar serena:
    - «Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
    Olhe não fique a casa arruinada…»

    - «Tu respondes assim? Tu zombas disto?
    Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
    Já tua mãe não tem mãos?» E, dizendo isto,

    Arremete-lhe à cara e ao penteado.
    Eis senão quando (caso nunca visto!)
    Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...



    E… quanto a «modas»… permitam-me… nada mais dizer!

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  • sábado, outubro 04, 2003

    O meu sótão: Às vezes, sinto que este blog é o meu sótão. Um sítio para lá de todos os sítios, em que a porta se abre e o mundo aparece, assim, como se estivesse destapado pela ponta de um véu. É aqui onde tenho os meus brinquedos, onde escondo os meus livros no meio do pó, onde sinto que os espelhos conseguem ser o prolongamento de mim mesmo. É aqui onde as pequenas coisas, por muito pequenas que sejam, conseguem ser realmente grandes. Tiro a roupa e fico como estou agora... despido de tudo o que está para trás.

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  • sexta-feira, outubro 03, 2003

    Imigrantes e emigrantes: No nosso país, os imigrantes do Leste começam a ganhar a mesma expressão dos emigrantes portugueses, que dobraram as fronteiras até França no tempo da ditadura salazarista. Há pontos de contacto entre ambos. Vindos de países onde o salário mínimo não dá para manter um nível de vida aceitável, os imigrantes do Leste vieram constituir a mão-de-obra que se tem desertificado em terminados sectores, nomeadamente, nas ditas profissões que não são do agrado dos mais jovens. Já há sinais que vivem em comunidade: andam juntos e frequentam os mesmos locais. Mas a prova provada de que este grupo está a criar raízes e a ganhar importância foi-me oferecida esta manhã. Num quiosque da Baixa do Porto, enquanto via as primeiras páginas, deparei-me com um jornal de caracteres esquisitos. Nem mais, nem menos, do que um semanário russo! Ali, à minha frente.

    PS: Em Paris, a Rádio Alfa só transmite emissões em português, seja música ou noticiários. Serve a comunidade emigrante, constituída por um milhão de pessoas, precisamente o número de habitantes da cidade de Lisboa.

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  • Paleta de cores: Em 18 de Setembro passado foi citado aqui, no Remoinhos, o nome da cineasta alemã Leni Riefenstahl, falecida em Setembro último, (1902-2003), com a idade de 101 anos.
    Personalidade bem controversa a desta «diva».
    Terá sido a sua vida uma paleta de cores? Quase certamente que sim. Certo é o enorme destaque desta cineasta, precursora no campo da 7ª Arte, incontestada mundialmente. Artista de múltiplas facetas foi uma inovadora impar, na sua época, na técnica e na arte cinematográficas. O seu final de carreira, - a partir dos 70 anos de idade e até quase aos 100 -, dedicou-o ao mergulho subaquático dando-nos a conhecer a sua artística visão desse deslumbrante mundo através de filmes que realizou, como o que vi num canal de televisão, há dois dias, no qual uma excepcional paleta de cores, de vida, e sons, me deixou verdadeiramente fascinada pelo perfeito equilíbrio de arte, sensibilidade e bom gosto.
    A 7ª Arte… que paixão…

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  • Enxurrada de rostos: Quando decidimos enfrentar as ruas, ir aqui e ali, somos sempre massacrados por uma autêntica enxurrada de rostos. Ninguém sabe de onde vêm, muito menos para onde vão. Por vezes, é sufocante. Eles aparecem em magotes, como se fossem uma massa de olhos, passam por nós, prosseguem a marcha, indiferentes, como se houvesse uma nascente de rostos em cada esquina. Que avançam e se perdem. Que andam e param. Que se cruzam e descruzam. Nem uma palavra. Tudo isto faz-me lembrar as ondas do mar a bater nas rochas. São ondas de rostos que batem em nós.

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  • quinta-feira, outubro 02, 2003

    Contrastes: Nem há um mês, escrevia aqui sobre os incêndios (vide 12 Setembro) que assolavam o país de norte a sul, fazendo uma espécie de crítica feroz às entidades responsáveis por tudo de mau que estava a acontecer. Os telejornais abriam com a imagem das chamas em pano de fundo, o trabalho árduo dos bombeiros era focado e o sofrimento das pessoas, que perdiam parte dos seus bens no fogo, servia para tocar no íntimo de cada um. Agora, tudo é diferente. Os blocos noticiosos entram da mesma forma, mas por outro caminho: a chuva que tem desabado bem lá do alto e causado um sem número de cheias. Acidentes, avenidas transformadas em rios e ruas formadas por pântanos. O que é fascinante em tudo isto - porque em tudo, há sempre um carácter de beleza - é o contraste entre duas realidades bem diferentes num curto espaço de tempo. A mãe natureza provoca alterações mais rápidas do que a nossa própria sombra.

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  • O silêncio: A mais poderosa de todas as vozes de uma conversa que fica, das palavras que se ouvem e vêm até nós, o mais lento de todos os respirares, a mais sublime felicidade depois de uma emoção forte, o mais sensível olhar de todos os olhares sensíveis. Tudo se resume ao silêncio.

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  • De mãos vazias: Porque a fragilidade do ser humano é imensa, porque o sofrimento dos outros nos consome também, porque a incapacidade de compreensão causa desespero, porque uma alma sangra e ninguém vê, porque de cada força há que ramificar braços até ao infinito, porque a resistência tem de ser inventada a cada dia, porque o amor pelo Homem é o pão, de mãos vazias… estendo os meus dois braços.

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  • quarta-feira, outubro 01, 2003

    Pela boca morre a médica: Esta história é verídica: uma médica de um centro de saúde particular, ao saber que iria consultar um grupo de jornalistas, deu ordens aos auxiliares para se conterem nas conversas, porque «os jornalistas são perigosos». Sim, eles comem criancinhas ao pequeno-almoço, de preferência barradas com manteiga para serem mais saborosas. Mas os mitos já não são aquilo que eram, a tradição já não é aquilo que era, nada é aquilo que era. Ao receber cada um deles no seu consultório, não conteve as palavras e foram mais os minutos de diálogo do que o tempo de consulta. No fim, cumprimentos, sorrisos, boa-disposição e algumas confidências pelo meio. Estórias em off-record que os jornalistas adoram saber, mas um off-record é sempre um off-record. Por isso, ponto final neste post.

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