sábado, janeiro 31, 2004


Por muito tempo tive um rosto inútil,
Mas agora
Tenho um rosto para ser amado.
Tenho um rosto para ser feliz.


(Poemas de Amor e De Liberdade, Paul Éluard)

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  • Divagações: O silêncio é o barulho que mais repudio.

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  • O poder da mente: É natural as pessoas serem cépticas, mas as desconfianças só acabam quando se vivem determinadas situações, por si só, muito complicadas e quase extremas. Há bem pouco tempo, descobri que o poder da mente não é um mero conceito que vem nos livros ou serve para preencher programas de televisão. A força do espírito é capaz de tudo, de provocar estados de alma que se reflectem no nosso próprio corpo como se houvesse uma causa e um efeito entre a mente e a carne. Estas histórias sempre me soaram a exagero, mas por conhecimento próprio cheguei à conclusão que são bastante verdadeiras. Um acontecimento muito específico provocou-me uma consumição interior de tal forma, que o meu medo que esse transtorno se transformasse numa dor física acabou por acontecer. Tudo se resumiu ao medo, ao mecanismo da mente que reagiu desta forma quando sentiu as paredes a apertarem-se de um momento para o outro. A dor aparecia sempre que pensava naquilo. Uma, duas, três vezes. Tantas que cheguei a perder a conta. Felizmente, venci o problema.

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  • sexta-feira, janeiro 30, 2004


    «Tenho a alma inundada de impossíveis
    que chove sobre ela
    o meu inconstante coração.»


    (Frederico García Lorca)

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  • quinta-feira, janeiro 29, 2004

    Emoções na panela: Ainda a morte de Fehér. Esta semana, a comunicação social explorou até ao tutano o trágico desaparecimento do jogador do Benfica. Vivemos num país onde as emoções valem ouro, são embrulhadas e vendidas como se fossem presentes para o grande público e depois consumidas de forma obstinada. Tudo o resto é irrelevante. As imagens do último sorriso e a queda fulminante para o relvado sensibilizaram-nos, assim como a dor levada ao extremo dos colegas de equipa a chorar à volta do caixão. Mas não bastou. Houve ainda necessidade de transmitir em directo o funeral do malogrado atleta numa cobertura televisiva que deve bater vários recordes de audiência. A ética, a barreira entre o que é do domínio público e os actos de foro privado são conceitos vazios perante determinadas formas que valorizam a tal tendência de conquistar os espectadores através de uma lágrima ou de uma imagem forte que represente mais do que mil palavras. Apesar de tudo, acho que houve o mínimo de bom-senso, caso contrário a morte de Fehér iria chocar ainda mais os portugueses. Por exemplo, a Sport tv, que estava a transmitir o jogo em directo, tinha uma câmara colocada no lado mais próximo do jogador, mas não passou uma única imagem capaz de ferir as mentes mais sensíveis. O realizador optou por um plano menor, feito por uma outra objectiva, em que os exercícios de reanimação e o corpo inerte do atleta passaram despercebidos aos olhos do público. É um gesto de louvar nos dias de hoje. Mas a necessidade cega de ir mais além alimentou o espírito de alguma concorrência que aliciou o canal de desporto a vender as tais imagens chocantes. Os responsáveis bateram o pé e disseram não. A minha homenagem.

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  • quarta-feira, janeiro 28, 2004

    Às coisas simples...: Por vezes, só damos valor aquilo que não temos.

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  • segunda-feira, janeiro 26, 2004

    Féher: Há alturas na vida em que as camisolas e as cores não fazem sentido. Quando a morte chega, quando os pensamentos nos povoam e as imagens valem mais do que mil palavras. Féher, jogador do Benfica, sorriu segundos antes de cair, fulminado, na relva húmida do estádio do Guimarães. Tinha 24 anos. Era jovem. Tinha o mundo a seus pés. Mas tudo se perdeu num momento, num gesto, num ápice de dor levado ao extremo por ser transmitido em directo. Equivaleu ao desmoronamento bárbaro das Torres Gémeas do World Trade Center. Pelo impacto. Pelo choro compulsivo dos colegas, que já premeditavam a morte quando os médicos tentavam fazer o impossível. Féher terá sido vítima de uma trombose pulmonar, algo que pode acontecer a qualquer um de nós. Independentemente da idade, do estrato social ou de sermos desportistas de alta competição. Ninguém prevê a morte, mas são momentos como este que nos levam a pensar que a morte é bem mais cruel do que aquilo que julgamos. Pode surgir a qualquer altura. Basta estarmos vivos para morrer a qualquer instante. Será que tudo isto faz sentido? A vida faz sentido quando somos jovens e morremos de um momento para o outro? Oscar Wilde, um dos grandes escritores britânicos, dizia que não era a morte que o aterrorizava, mas a sua antecipação. Féher sorriu segundos antes de morrer. Não há melhor forma de encarar a morte. Esta é a imagem que devemos reter da sua última queda, o sorriso. O sorriso de quem não teve medo de morrer.

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  • Trecho do filme
    O GRANDE DITADOR


    «Pensamos em demasia e sentimos bem pouco.
    Mais do que máquinas,
    precisamos de humanidade.
    Mais do que inteligência,
    precisamos de afeição e doçura.
    Sem essas virtudes,
    a vida será de violência e tudo será perdido.
    Aos que me podem ouvir eu digo:
    "Não desespereis".
    A desgraça que tem caído sobre nós
    não é mais do que o produto da cobiça em agonia,
    da amargura de homens
    que temem o avanço do progresso humano.
    Os homens que odeiam desaparecerão,
    os ditadores sucumbem
    e o poder que do povo arrebataram
    há de retornar ao povo.
    E assim, enquanto morrem homens,
    a liberdade nunca perecerá.
    Soldados!
    Não vos entregueis
    a esses brutais que vos desprezam,
    que vos escravizam,
    que arregimentam as vossas vidas,
    que ditam os vossos actos,
    ideais e sentimentos!
    Não sois máquinas!
    Homens é que sois!
    E com o amor da humanidade em vossas almas!
    Não odieis!
    Só odeiam os que não se fazem amar,
    os que não se fazem amar e os inumanos!
    Soldados!
    Não batalheis pela escravidão!
    Lutai pela liberdade!
    No 17º capítulo de São Lucas é escrito
    que o Reino de Deus está dentro do homem,
    não de um só homem ou um grupo de homens,
    mas dos homens todos!
    Está em vós!
    Vós, o povo, tendes o poder!
    O poder de criar máquinas!
    O poder de criar felicidade!
    O poder de tornar esta vida livre e bela!
    O poder de fazê-la uma aventura maravilhosa!
    Portanto, em nome da democracia,
    usemos desse poder,
    unamo-nos todos nós.
    Lutemos por um mundo novo,
    um mundo bom que a todos assegure
    o ensejo de trabalho,
    que dê futuro à mocidade
    e segurança à velhice.
    Lutemos agora para libertar o mundo,
    abater as fronteiras nacionais,
    dar fim à ganância,
    ao ódio e à prepotência.
    Lutemos por um mundo de razão,
    um mundo em que a ciência e o progresso
    conduzam à ventura de todos nós.
    Onde te encontres, levante os olhos!
    O sol vai rompendo
    as nuvens que se dispersam!
    Estamos saindo da treva para a luz!
    Vamos entrando num mundo novo,
    um mundo melhor,
    em que os homens estão acima
    da cobiça, do ódio e da brutalidade.
    Ergue os olhos!
    A alma do homem ganhou asas e,
    afinal, começa a voar.
    Voa para a luz da esperança.
    Ergue os olhos!
    Ergue os olhos!»

    (Charles Chaplin)

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  • domingo, janeiro 25, 2004

    Às coisas simples...: como o pão. Deve ser o único alimento que comemos todos os dias, mas nunca o enjoamos. Por que será?

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  • sexta-feira, janeiro 23, 2004

    Frio: Há um hálito de Inverno em cada gesto, como se o tempo fosse uma fotografia velha, um pedaço de nós que ficou para trás, esquecido no meio de um livro, à espera de uma tarde quente, de um raio de sol. Não há vozes, nem ruídos, emerge um silêncio oculto no vidro da janela à medida que a neblina rompe ao final da tarde e preenche o vazio como se fosse um abraço. Está frio. As mãos geladas. Os pés estáticos. Tudo se resume a uma imagem perdida. No tempo, no espaço, num simples olhar.

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  • quinta-feira, janeiro 22, 2004

    Universo pimba: Nos dias de frio, quando as folgas têm de ser geridas em casa, como agora, as opções televisivas esbarram sempre no universo pimba que prolifera, dia após dia, no leque de escolhas do telespectador português. A angústia começa logo de manhã, estende-se até ao final da tarde, apenas conhece uma paragem súbita (bendita paragem) por causa do telejornal à hora da refeição. De resto, nada serve de exemplo. Nem os programas antes do almoço, preenchidos pelo tarot, nem as tardes repletas de convidados sem o mínimo de interesse público. É esta a televisão que temos. A solução passa pelos outros canais do cabo, mas esse é um privilégio que nem todos têm acesso. O mais irritante é que os programas, os filmes e os documentários com carimbo de qualidade só vão para o ar a horas tardias, quando o cansaço se instala e aconselha o repouso no conforto dos lençóis.

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  • terça-feira, janeiro 20, 2004

    Ainda o poeta Ary dos Santos (dois poemas):

    Original é o poeta

    Original é o poeta
    que se origina a si mesmo
    que numa sílaba é seta
    noutro pasmo ou cataclismo
    o que se atira ao poema
    como se fosse um abismo
    e faz um filho ás palavras
    na cama do romantismo.
    Original é o poeta
    capaz de escrever um sismo.

    Original é o poeta
    de origem clara e comum
    que sendo de toda a parte
    não é de lugar algum.
    O que gera a própria arte
    na força de ser só um
    por todos a quem a sorte faz
    devorar um jejum.
    Original é o poeta
    que de todos for só um.

    Original é o poeta
    expulso do paraíso
    por saber compreender
    o que é o choro e o riso;
    aquele que desce á rua
    bebe copos quebra nozes
    e ferra em quem tem juízo
    versos brancos e ferozes.
    Original é o poeta
    que é gato de sete vozes.

    Original é o poeta
    que chegar ao despudor
    de escrever todos os dias
    como se fizesse amor.
    Esse que despe a poesia
    como se fosse uma mulher
    e nela emprenha a alegria
    de ser um homem qualquer.



    Poeta castrado não!

    Serei tudo o que disserem
    por inveja ou negação:
    cabeçudo dromedário
    fogueira de exibição
    teorema corolário
    poema de mão em mão
    lãzudo publicitário
    malabarista cabrão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado não!

    Os que entendem como eu
    as linhas com que me escrevo
    reconhecem o que é meu
    em tudo quanto lhes devo:
    ternura como já disse
    sempre que faço um poema;
    saudade que se partisse
    me alagaria de pena;
    e também uma alegria
    uma coragem serena
    em renegar a poesia
    quando ela nos envenena.

    Os que entendem como eu
    a força que tem um verso
    reconhecem o que é seu
    quando lhes mostro o reverso:

    Da fome já não se fala
    - é tão vulgar que nos cansa -
    mas que dizer de uma bala
    num esqueleto de criança?

    Do frio não reza a história
    - a morte é branda e letal -
    mas que dizer da memória
    de uma bomba de napalm?

    E o resto que pode ser
    o poema dia a dia?
    - Um bisturi a crescer
    nas coxas de uma judia;
    um filho que vai nascer
    parido por asfixia?!
    - Ah não me venham dizer
    que é fonética a poesia!

    Serei tudo o que disserem
    por temor ou negação:
    Demagogo mau profeta
    falso médico ladrão
    prostituta proxeneta
    espoleta televisão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado não!

    Ary dos Santos

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  • «Será que estou maluco?» Quem se questiona assim, não está louco.

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  • Aqui lhe rendo homenagem, passados estes vinte anos.
    A 18 de Janeiro de 1984, faleceu o grande poeta José Carlos Ary dos Santos.


    A cidade é um chão de palavras pisadas

    A cidade é um chão de palavras pisadas
    a palavra criança a palavra segredo.
    A cidade é um céu de palavras paradas
    a palavra distância e a palavra medo.

    A cidade é um saco um pulmão que respira
    pela palavra água pela palavra brisa
    A cidade é um poro um corpo que transpira
    pela palavra sangue pela palavra ira.

    A cidade tem praças de palavras abertas
    como estátuas mandadas apear.
    A cidade tem ruas de palavras desertas
    como jardins mandados arrancar.

    A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
    A palavra silêncio é uma rosa chá.
    Não há céu de palavras que a cidade não cubra
    não há rua de sons que a palavra não corra
    à procura da sombra de uma luz que não há.

    Ary dos Santos

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  • sexta-feira, janeiro 16, 2004

    Pragas (culpa nossa): A praga dos arrumadores de automóveis que assola as grandes cidades, em parte, é da responsabilidade do cidadão comum. Somos nós que contribuímos para que a coacção reine quando estacionamos o carro em determinado sítio e temos o homem das barbas, de roupa esfarrapada e de cara de poucos amigos à porta do automóvel. A questão não se resume só ao acto de dar a moeda, é bem mais vasta do que isso. O problema está na nossa comodidade. Somos incapazes, muitas vezes, de optar pelo autocarro quando vamos ao centro da cidade. Não queremos, não gostamos. Porque está a chover. Por muitas razões. Não conheço nenhuma cidade lá fora onde os arrumadores manietem os automobilistas como aqui, simplesmente porque não há arrumadores como aqui. Mesmo que um jovem promissor quisesse fazer carreira na profissão, estaria votado ao fracasso. Há um grande motivo para que assim seja. O culto de viajar nos transportes públicos está de tal forma enraizado que a confusão no trânsito, por exemplo, é coisa que não existe em Londres. Desde o executivo à empregada da limpeza, o metro continua a ser o maior escape de todas as necessidades que obriguem uma viagem até ao centro da cidade. Isto leva a um outro hábito que não existe no nosso país. As viagens no metro são preenchidas da melhor forma possível. De livro na mão. De jornal à frente dos olhos. Coisa que não valorizamos por estes lados.

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  • quinta-feira, janeiro 15, 2004

    Queria Um Abraço Hoje

    De repente deu vontade de um abraço...
    Uma vontade de entrelaço, de proximidade…
    de amizade… sei lá…

    Talvez um aconchego que enfatize a vida e
    amenize as dores...
    Que fale sobre os amores,
    que seja teimoso e ao mesmo tempo forte.

    Deu vontade de poder rever saudade de um abraço.
    Um abraço que eternize o tempo e preencha todo espaço
    mas que faça lembrar do carinho, que surge devagarzinho
    da magia da união dos corpos, das auras… sei lá…

    Lembrar do calor das mãos
    acariciando as costas a dizer… "estou aqui."
    Lembrar do trançar dos braços envolventes
    e seguros afirmando "estou com você…"
    Lembrar da transfusão de forças
    com a suavidade do momento... sei lá..

    abraço... abraço... abraço...
    abraço... abraço... abraço...
    abraço... abraço... abraço...

    O que importa é a magia deste abraço!
    A fusão de energia que harmoniza,
    integra tudo, e que se traduz
    no cosmo, no tempo e no espaço.
    Só sei que agora deu vontade desse abraço!
    Que afaste toda e qualquer angústia.

    Que desperte a lágrima da alegria, e acalme o coração.
    Que traduza a amizade, o amor e a emoção.
    E para um abraço assim só pude pensar em você....
    nessa sua energia, nessa sua sensibilidade
    que sabe entender o por quê...
    dessa vontade desse abraço.

    Vinícius de Moraes

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  • Parabéns: A blogosfera serve um pouco para tudo. Para escrever aquilo que sentimos e também para dar os parabéns. Porque hoje é o dia que é, um beijo para ti. Parabéns.

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  • terça-feira, janeiro 13, 2004

    Com um ramo de flores virtuais, recebi:

    Há pessoas que nunca vimos... mas que habitam o nosso espaço quotidiano, porque a sua energia tudo envolve e tudo contagia.

    Obrigada, Tina.

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  • Pragas: Um dos grandes problemas da cidade do Porto é a praga que o presidente da câmara prometeu exterminar e agora quer legalizar. Faça chuva ou faça sol, estão em todo o lado. De preferência nas zonas críticas da baixa, onde arranjar lugar para estacionar é uma tarefa tão difícil como encontrar uma agulha num palheiro. Vestem mal, têm um aspecto deplorável e a cara transforma-se em função do próprio momento: triste e angustiada se o automobilista der moeda; furiosa e agressiva se não formos à carteira. É esta coacção pura e cobarde que reina e nos leva ao desespero – se não dermos moeda, a pintura do carro corre o risco de ser danificada. Há uma questão que convém lembrar. Esta gente ganha mais do que muitos de nós a trabalhar de manhã à noite, não declaram o que recebem e não pagam impostos. À nossa custa.

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  • domingo, janeiro 11, 2004

    Carta aos amigos

    “Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse um fragmento de vida, possivelmente não diria tudo o que penso mas em definitivo pensaria tudo o que digo.
    Daria valor às coisas, não pelo que valem, senão pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz.
    Andaria quando os demais se detêm, despertaria quando os demais dormem. Escutaria quando os demais falam, e como desfrutaria um bom sorvete de chocolate!
    Se Deus me obsequiasse um fragmento de vida, vestiria simples, me atiraria de bruços ao sol, deixando descoberto, não somente meu corpo senão minha alma.
    Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre o gelo, esperaria que saísse o sol.
    Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que lhes ofereceria à lua. Regaria com minhas lágrimas as rosas, para sentir a dor de seus espinhos, e o encarnado beijo de suas pétalas...
    Deus meu, se eu tivesse um fragmento de vida... Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas que quero, que as quero. Convenceria a cada mulher ou homem de que são meus favoritos e viveria enamorado do amor.
    Aos homens lhes provaria quão equivocados estão ao pensar que deixam de enamorar-se quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de enamorar-se! À criança lhe daria asas, porém lhe deixaria que sozinha aprendesse a voar.
    Aos velhos lhes ensinaria que a morte não chega com a velhice senão com o esquecimento.”

    (Gabriel Garcia Marquez - Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

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  • Um rosto: A cidade envolta em nevoeiro, esquecida no tempo, percorrida por meia dúzia de carros de faróis ligados. Nada se repete, ninguém fica indiferente a mais nada. Do alto, bem lá do alto (onde?, não dá para ver...) a chuva cai de mansinho, quase sem pedir licença, perdendo-se nas horas até de madrugada. Vence a noite, percorre os sinais luminosos, ajoelha-se nas árvores, sobrevoa os edifícios, lambe as ruas de silêncio e repousa à medida que o vento se instala nas avenidas, nas vielas, no recanto de cada esquina. Por entre o nevoeiro, aparece um rosto, surge uma palavra. Melancólica palavra...

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  • sexta-feira, janeiro 09, 2004

    Soneto da Fidelidade

    De tudo, ao meu amor serei atento
    antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
    que mesmo em face do maior encanto
    dele se encante mais meu pensamento.

    Quero vivê-lo em cada vão momento
    e em seu louvor hei-de espalhar meu canto
    e rir meu riso e derramar meu pranto
    ao seu pesar ou seu contentamento.

    E assim, quando mais tarde me procure
    quem sabe a morte, angústia de quem vive
    quem sabe a solidão, fim de quem ama

    eu possa (me) dizer do amor (que tive):
    que não seja imortal, posto que é chama
    mas que seja infinito enquanto dure.

    (Vinícius de Moraes)

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  • quinta-feira, janeiro 08, 2004

    Uma brincadeira: Se gostam de uma boa surpresa, adoram melhorar os vossos conhecimentos e nunca dispensam uma boa brincadeira, aqui vai. Cliquem, força. Aqui.

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  • Um grito de raiva!

    Confrange-me o comportamento imediatista, prática dos actuais dias.
    Confrange-me a leviandade dos actos cometidos pelos mais responsáveis círculos de uma sociedade, em que os efeitos, a curto, médio ou longo prazo, são ultrajantes e deprimentes.
    Confrange-me a falta de capacidade de aprendizagem de uma colectividade que ainda não consegue respirar a bênção de uma democracia instalada há quase trinta anos.
    O monstruoso escândalo que vivemos desde há cerca de um ano envergonha-me, dia após dia.
    Vejo inúmeras Nações irmãs a colocar o seu dedo nesta chaga sangrenta, premendo, premendo até que a mágoa nos tinja a cara de infâmia.
    De algumas direcções o desinteresse “umbiguista” é camuflado por sorrisos cúmplices ao sistema de Justiça praticado.
    De outras, salta uma apatia insalubre a um incómodo e mais declarado grito de: quando é que isto vai ter um fim?
    Como é possível este carrossel desenfreado, em que uns entram e outros se apeiam, sacudindo a água dos seus capotes e ostentando uma impunidade insolente.
    Sempre considerei que cada povo tem os governantes que merece.
    Que raio de gente nós somos que não consegue, não sabe, ou não quer, insurgir-se energicamente contra a falta de clareza e eficácia de “regras” básicas de um sistema que escancara aos olhos de cada um uma arrogância provocatória.
    Está doente a nossa gente. Perdeu-se a inocência da criança que se sente no direito de se afirmar, manifestando uma raiva sã contra os joguinhos de cabra-cega traiçoeiros e ameaçadores da dignidade de cada um.
    Quantos adormecem cada noite com a carga de um pesadelo que não termina, sabendo que em cada dia seguinte, ao acordar, esse pesadelo lhes vai turvar mais e mais a necessária visão límpida para a estruturação da sua própria resistência.
    Quantos não se atormentam com a hipótese de, no dia seguinte, ouvirem num serviço noticioso o nome de um parente ou de um amigo, envolvido nesta trama lamacenta que alimenta, a papo cheio, uns quantos e destrói muitos e muitos outros.
    Consciencialização colectiva, onde mora?
    Espírito de união que faz a força, onde paira?
    Princípios éticos, onde navegam?
    O escrúpulo, fora de moda?

    Alguns pensam: uma boa partida de futebol regada com um copito, adormece e faz delirar estas “santas” alminhas.

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  • Correio Azul. Não... Violeta:

    Vinícius de Moraes disse um dia:

    “Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!
    A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.
    Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida... mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não o declare e não os procure sempre...”

    Mil beijos, Filhota.

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  • quarta-feira, janeiro 07, 2004

    As maravilhas do Mundo: Há coisas que o próprio homem desconhece. Sabemos que existe o óbvio: a chuva, o sol, a lua e tudo o resto que compõe o Mundo. Mas o tudo o resto é sempre muito vago. Foi a falar de tudo o resto que o meu grande amigo Goldriver, um poço de sabedoria e de conhecimento, me explicou algo que pode mudar a vida de muito boa gente. Os bosquímanos San são uma das tribos mais miseráveis da África do Sul e uma das mais pobres do mundo. Mas têm um bem precioso. Chama-se Hoodia, é um cacto que cresce no deserto de Kalahari e bem pode enriquecer o espírito de milhões de pessoas. E não só. Os cientistas já estão a trabalhar nesse sentido e 2006 deve ser o ano da mudança. Quem não gosta do seu corpo, vai passar a adorá-lo. Antes de irem para a caça, os San ingerem o sumo do Hoodia e conseguem estar dois dias (leu bem, dois dias) imunes à fome e à sede. Assim, respeitam a tradição: chegam a casa sem comerem pelo caminho.

    PS. Provavelmente, os obesos (perdoem-me a palavra), que estão a ler este texto, estão com um sorriso nos lábios. Não tarda nada, terão um corpinho perfeito. Não se acredita? Então leia aqui, aqui e aqui.

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  • terça-feira, janeiro 06, 2004

    Recordações: Há dias em que aquela imagem persegue-me. Uma, duas, as vezes que forem precisas. É como se tivesse uma televisão à frente que passasse tudo aquilo que já vivi. Aquele cheiro invade-me as narinas, percorre-me o sangue, afoga-me a alma em recordações preciosas, mas provoca-me um misto de saudade e de romantismo. Dou por mim a viajar no tempo. Não sei onde posso encontrar novamente aquele cheiro, uma combinação perfeita de papel, de soalho encerado, de palavras, de sonhos infantis, de vozes, de pólen, de chuva, do respiro das árvores e do sol. Todas as palavras são poucas para falar daquele cheiro. Havia também um pouco de fúria, de ambição e de receio. Tinha menos de dez anos. Mas já entendia o significado das vozes à espreita. A minha escola primária cheirava assim...

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  • METADE DE MIM

    «Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio. Que a morte de tudo o que eu acredito não me tape os ouvidos e a boca.
    Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.
    Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste. Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
    Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.
    Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor, apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
    Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.
    Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço. Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
    Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é vulcão.
    Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável. Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
    Porque metade de mim é a lembrança do que eu fui, a outra metade eu não sei ...
    Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me aquietar o espírito. E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
    Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
    Que a arte nos apronte uma resposta, mesmo que ela não saiba, e que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
    Porque metade de mim é platéia e a outra metade, a canção. E que a minha loucura seja perdoada.
    Porque metade de mim é amor e a outra metade também!»

    (By Oswaldo Montenegro)

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  • domingo, janeiro 04, 2004


    Vamos cantar as Janeiras:


    Natal dos simples

    Vamos cantar as janeiras
    Vamos cantar as janeiras
    Por esses quintais adentro vamos
    Às raparigas solteiras

    Vamos cantar orvalhadas
    Vamos cantar orvalhadas
    Por esses quintais adentro vamos
    Às raparigas casadas

    Vira o vento e muda a sorte
    Vira o vento e muda a sorte
    Por aqueles olivais perdidos
    Foi-se embora o vento norte

    Muita neve cai na serra
    Muita neve cai na serra
    Só se lembra dos caminhos velhos
    Quem tem saudades da terra

    Quem tem a candeia acesa
    Quem tem a candeia acesa
    Rabanadas pão e vinho novo
    Matava a fome à pobreza

    Já nos cansa esta lonjura
    Já nos cansa esta lonjura
    Só se lembra dos caminhos velhos
    Quem anda à noite à ventura


    (José Afonso)

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  • Figuras que me fascinam:

    se fosse uma flor seria um lírio
    se fosse um aroma seria o do alecrim
    se fosse uma cor seria o azul forte do céu
    se fosse uma parte do corpo humano seria uma cabeleira ao vento
    se fosse um ruído seria o do marulhar do mar
    se fosse um momento do dia seria a aurora de cada manhã
    se fosse um objecto seria uma batuta
    se fosse um sentimento seria a fraternidade
    se fosse uma grande virtude seria a honestidade
    se fosse uma expressão do rosto seria um largo sorriso
    se fosse um adorno seria uma bengala
    se fosse uma estação do ano seria a Primavera
    se fosse uma cidade seria Viena
    se fosse um instante seria sempre.

    É assim o homem de quem falo e que muito admiro;
    O grande Maestro António Vitorino de Almeida

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  • Se as minhas palavras têm fraca voz... darei voz às palavras dos que falam alto e bem.

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  • sábado, janeiro 03, 2004

    Quem são eles?: Todos os dias, todas as horas, estão na rua de Santa Catarina, na Baixa do Porto, quase à porta do centro comercial. Vestem simples, são bem parecidos, têm expressões no rosto que transmitem serenidade. Não são mendigos, mas devem viver com algumas dificuldades. Ela usa um casaco até aos pés, tem a pele branca e os lábios muito vermelhos; ele acompanha-se de um chapéu castanho, a barba está aparada e os olhos azuis perseguem os transeuntes. Passam o tempo a cantar ópera e uma coluna garante-lhes o som de fundo como se tivessem uma orquestra ao vivo. Nunca desafinam. Os gestos são coloquiais e gostam de dar expressão à música com as mãos. Pressente-se que já viveram bem. Que têm um pingo de cultura no sangue. Mas inquietam quem passa na rua. É um olhar de dor, de medo, de angústia, de frio e de indignação. Não são portugueses. «Ópera russa», pode ler-se numa folha de cartão junto ao cesto das moedas.

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  • sexta-feira, janeiro 02, 2004

    APENAS POESIA

    «Hoje as calçadas amanheceram com o branco
    da poesia a iluminar-lhes o orvalho da madrugada.
    Alguém derramou um punhado desordenado de poemas
    sobre as pedras nuas dos caminhos e dos becos da ilha;
    os muros arrumaram-se em volta das rimas e dos versos livres
    e as paredes de repente caiaram-se de palavras límpidas
    como as penas dos gansos brincando no convés das ribeiras.

    É o Dia do Sol espumando a água dos vulcões silenciosos
    a invadir os cadernos alvos de apontamentos com as flores
    e as estrelas dos poetas embalados pelas ondas do mar;
    canta as ruas, as árvores e ama as casas, os velhos cansados
    e as crianças que se escondem alvoroçadas entre as mãos da mãe;
    assim procura viver as aventuras dos barcos, habitar as sombras,
    acordar a solidão dos ventos, amainar o pulsar do coração dos homens.

    Hoje é o dia de partir em busca das brisas suaves da primavera,
    o momento de encantar as serpentes, de aplainar os socalcos das montanhas,
    de aprender novos cânticos no murmurar dos riachos, na voz dos pássaros.
    Hoje é o dia do louvor aos hinos, às hossanas, aos abraços de amigos
    vencendo as agruras e os medos das distâncias, às cartas por escrever,
    aos segredos bem guardados, ao respirar apressado do amor.
    É hoje o dia. O resto dorme escondido nas entrelinhas, nas malhas da poesia.»

    (José António Gonçalves - Poeta Madeirense)

    (inédito, 14.03.03)

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