sábado, julho 31, 2004

Assunto sério

Os incêndios estão na ordem do dia e a exploração fácil do sentimento das pessoas continua a ser a táctica ideal por parte dos órgãos de comunicação social para agitar o espírito do povo. É facto que as emoções fortes vendem, satisfazem os olhos de muito boa gente, mas quando se utiliza a mesma fórmula vezes sem conta entra-se pelo tenebroso caminho do desgaste. É isso que tem acontecido. Veja-se, por exemplo, a imagem oferecida por uma estação de televisão à hora de almoço, repetida à mesma hora do dia seguinte e também a ser transmitida no telejornal da noite: um idoso dirige-se às chamas, provavelmente para salvar o que ainda resta de uma casa a ser consumida pelo fogo, ouvindo-se uma voz em choro de uma mulher fora do seu estado normal: «Paizinho, paizinho». O desespero alheio repetido vezes sem conta. Até parece que se está a brincar. E o assunto é sério, muito sério...

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  • quinta-feira, julho 29, 2004

    Lembranças, 2

    Sempre soube o nome das limas de cor. Lembro-me das murças, das grossas e das meias-canas. Conheço os formatos e as medidas de cada uma. Sei para que servem. O tempo passa, mas as lembranças permanecem dentro de mim como um tesouro escondido num baú. Na oficina o cheiro a óleo era intenso. O tanque é preto, o chão é preto, as paredes são pretas e os panos estão pretos, mas a parede do forno é sempre laranja. Recordo-me daquelas mãos firmes a amassar o barro, quando era preciso erguer a parede do forno. A colher na mão, a perícia de quem conhece todos os segredos, a língua de fora, o cigarro na boca e os óculos grossos encostados ao nariz. Os movimentos sempre doces, penetrantes, o meu olhar de criança atenta e com medo de sujar a roupa, com medo de me encostar ao cepo onde as limas eram prendidas em correntes de borracha. Quieto observava tudo. E interrogava-me de como era branco o tanque do tempero e de como eram laranjas as limas de metal a sair do forno, a escaldar, em direcção à água escura onde arrefeciam e libertavam vapores de aflição. Lembro-me da tenaz grande, do pau longo, como se fosse um remo, para raspar as limas e dos movimentos circulares do meu padrinho para tirar todas as réstias de ferrugem. Sei que à entrada da oficina havia uma rampa, ao longe o armário verde escondia jornais novos, fios amarelos e garrafas de óleo cortadas a meio. Mas o que me entusiasmava era a parte de picar as limas. Quando ele prendia o metal no cepo de madeira, com as tais correntes de borracha em direcção aos pés, pegava em cinzéis de bico fino, suspendia os óculos de massa grossa no cimo do nariz e desenhava ranhura por ranhura, fissura por fissura, num martelar doce, suave, como se fosse o instrumento de uma orquestra. Adorava aquilo, não sei porquê. Continuava imóvel, em silêncio, a olhar para as mãos grossas, atento aos movimentos, ao cigarro a arder no cinzeiro e fintava, a espaços, aquela imagem quando passava os olhos através da janela e via as pedras de carvão apinhadas no quintal; o cão a ladrar, pedaços de lenha acumulados e o meu olhar outra vez cravado nas mãos grossas, na lima de metal presa às correntes de borracha e no toque do martelo, lento, incisivo e harmonioso. De vez em quando, o meu padrinho olhava para mim. Mas eu estava ali e não estava; estava dentro da oficina e não estava. Lembro-me da minha bata aos quadradinhos azuis e brancos, feita pela minha mãe, e da ternura de como me colocava as mãos pretas na cara só para me afugentar o medo, o medo de me sujar.

    Picar limas, transformar as limas gastas em limas novas, aí está mais uma profissão que morreu com o tempo. Ele também já partiu...

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  • quarta-feira, julho 28, 2004

    Lembranças, 1

    Há profissões que fazem parte do nosso imaginário infantil, moldam-nos sonhos e alimentam-nos vontades. Já fomos um pouco de tudo. Desde o homem do talho, ao taxista, passando ainda pelo mecânico de automóveis. As crianças têm sempre uma visão romântica do mundo. Mas, às vezes, parecem saber o que custa trabalhar de sol-a-sol, de enxada na mão, ou no alto-mar à procura de peixe, porque vêem no lavrador e no pescador dois heróis ao nível do Super-Homem e do Homem-Aranha. É curioso. Agora, muitos de nós desprezam tão nobres actividades. Por isto, ou por aquilo, pouco importa. Já quisemos ser bombeiros, polícias, canalizadores e até doentes - é verdade, quem não se lembra? - quando brincávamos aos médicos. E agora?

    Houve profissões que nos inspiraram e foram capazes de nos ajudar a construir os alicerces da própria realidade. Já aqui falei dos sinaleiros, dos gestos expressivos do homem-das-luvas-brancas, como se fosse um actor e a avenida se transformasse no seu palco predilecto durante a tarde, mas hoje apetece-me falar dos cobradores. Já não existem. As novas tecnologias fizeram o favor de atirá-los para um canto, provavelmente foram reformados antes do tempo ou tiveram de optar por outro modo de vida. Havia ali qualquer coisa de inexplicável. Chamava-me a atenção a pasta na mão, com a aba dobrada ao contrário, de um lado os recibos, do outro o dinheiro.

    Apreciava os dedos do homem, a tactear o papel, a verificar a morada, a certificar-se da quantia exacta que o cliente - a palavra «consumidor» é uma modernice - tinha de pagar. Havia ali qualquer coisa de diferente. Não sei porquê. Talvez porque achasse piada àquele ritual. Todos os meses, o homem das suíças largas batia à porta, a minha avó ia buscar o porta-moedas, pagava a conta da luz ou da água e a perguntava se a vizinha do lado estava em casa. Se a resposta fosse negativa, pagava a quantia em dívida e ficava com o respectivo recibo. Era mais do que uma simples relação de confiança. Muito mais do que isso.

    Mas nos tempos que correm os cobradores não tinham o seu espaço. Às vezes, penso nisso. Porque vivemos fora de casa, ou a trabalhar, ou na esplanada do café, ou porque queremos ir às compras e não estamos para ficar rodeados por quatro paredes. Tudo mudou. Não sei se para melhor ou para pior. Hoje as contas são pagas no multibanco. Basta meter o cartão na máquina - «máquina», aqui está a palavra chave -, digitar o código e proceder à respectiva operação. As dívidas são bem maiores do que no passado. Paga-se mais pelo metro cúbico da água, muito mais. Se o cobrador nos aparecesse em casa, de repente, nem estaríamos prevenidos para saldar o montante da dívida em dinheiro vivo. Hoje consumimos, hoje somos consumidores e temos de ser modernos para consumir, mais, sempre muito mais.

    Lembro-me também de outro ritual. Quando batia à porta o contador - sim, o homem que contava a luz e a água e examinava de lanterna na mão os respectivos contadores, apontando os valores num caderninho quadriculado. E a minha avó tinha a chave da vizinha do lado - sim, «a chave» de casa da vizinha do lado - e ia a correr abrir a porta para que a pobre da senhora não tivesse de pagar o dobro no mês seguinte. Hoje não confiamos em ninguém, nem no simpático casal que mora no lado esquerdo. Também se fazem estimativas. Liga-se para a companhia e debita-se a contagem, às vezes, numa máquina. É simples e frio como um cubo de gelo. Como o Mundo em que vivemos.

    Curiosamente, meus amigos, nunca me deu na cabeça dizer «quando for grande quero ser cobrador». Ele há coisas...

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  • terça-feira, julho 27, 2004

    Incêndios

    A saga repete-se. No ano passado, o fogo devorou héctares e héctares de mata, agora a natureza - ou outras forças que a natureza desconhece - voltou a pintar de laranja as florestas portuguesas. Como sempre o calor não explica tudo, mas os fenómenos passados explicam quase tudo. Pouco ou nada se fez para evitar estas catástrofes. As matas continuam sem vigilância, os lixos não foram removidos e os descuidos acontecem todos os dias. A culpa morre sempre solteira. Mas o Governo devia ter aprendido a lição do ano anterior. Há coisas que se evitam, ou melhor, há coisas que podem ser circunscritas para não ganharem proporções gigantescas. Não foi o caso.

    PS1: Ridícula a passividade das autoridades que permitiram que as chamas de um incêndio se aproximassem de uma auto-estrada. Ninguém avisou, os bombeiros nada fizeram e a polícia não cortou a via como lhe competia. Alguns automobilistas entraram em pânico e inverteram o sentido da marcha(!). Pagar portagem não significa segurança nas estradas portuguesas - é triste ter de mencionar este chavão.

    PS2: Há pouco a Maria alertava-me para o fenómeno do calor. Tudo se deve a uma enorme tempestade no deserto do Saara, em África, que alterou as temperaturas e fez subir o mercúrio dos termómetros para níveis impensáveis. É por isso que o céu tem sido menos azul do que o habitual. Mais amarelo do que seria de prever. Já repararam?

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  • domingo, julho 25, 2004

    O outro lado da lua

    Por imperativos próprios de quem está de férias, não assinalei os 35 anos da chegada do Homem à lua. A 20 de Julho de 1969, as barreiras entre a realidade e o imaginário reduziram-se a uma linha muito ténue: «Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a Humanidade», como disse Neil Armstrong. Mas há sempre o outro lado da lua. Infelizmente, esta viagem de exploração ao espaço não foi movida pela curiosidade humana de conquistar novos mundos e alargar os seus próprios horizontes. Todas as comparações com as viagens dos portugueses à descoberta dos oceanos caem por terra. Infelizmente, o Homem chegou à lua e conquistou o espaço pela acção da própria política. Foi o conhecido braço-de-ferro com os soviéticos, no auge da Guerra Fria, que levou os americanos a descobrir o mundo que se esconde fora do nosso planeta. Essa é que é essa. Tudo o resto é pura imaginação.

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  • Observações

    Exercício curioso: observar o pôr-do-sol num restaurante virado para o mar. A imagem é gasta, a terapia já se confundiu com outros momentos, mas há coisas que merecem a pena serem sublinhadas a vermelho. Não falo do pôr-do-sol ou do amarelo a entrelaçar o azul do céu, que minutos depois se transforma em cor-de-laranja-puro. Nada disso. Falo apenas do mar. Encrespado, à medida que o sol ultrapassa a linha do horizonte e desaparece num último instante; depois sereno, quando a noite já venceu o dia. É este contraste que me seduz. É este extremo que prende o meu olhar e estimula o meu pensamento. A noite é capaz de amansar tudo, o mar, as vozes que se ouvem ao longe e fazer desaparecer a espuma das ondas. A noite é capaz de tudo. Até de nos envolver em silêncio...

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  • De regresso...

    ... à minha cidade, claro.

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  • sexta-feira, julho 23, 2004

    poesia do mar

    Mar. Manhã

    Suavemente grande avança
    Cheia de sol a onda do mar;
    Pausadamente se balança,
    E desce como a descansar.

    Tão lenta e longa que parece
    De uma criança de Titã
    O glauco seio que adormece,
    Arfando à brisa da manhã.

    Parece ser um ente apenas
    Este correr da onda do mar,
    Como uma cobra que em serenas
    Dobras se alongue a colear.

    Unido e vasto e interminável
    Não são sossego azul do sol,
    Arfa com um mover-se estável
    O oceano ébrio de arrebol.

    E a minha sensação é nula,
    Quer de prazer, quer de pesar...
    Ébria de alheia a mim ondula
    Na onda lúcida do mar.


    Fernando Pessoa


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  • quinta-feira, julho 22, 2004

    poesia do mar

    O mar


    Não é nenhum poema
    o que vos vou dizer
    Nem sei se vale a pena
    Tentar-vos descrever

    O Mar

    O Mar

    E eu aqui fui ficando
    só para O poder ver
    E fui envelhecendo
    sem nunca O Perceber

    O Mar

    O Mar


    Pedro Ayres Magalhães

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  • quarta-feira, julho 21, 2004

    poesia do mar

    Uma menina

    água, tua música de pele
    e cheiro fluindo de florações
    impalpáveis, chuva acesa
    no centro do abismo, onde flutuam
    manhãs

    terra, teus passos tua voz teus
    ruídos de amor e um gozo
    além das cordilheiras do sonho
    tecendo galáxias, vertiginosa
    raiz

    ar, teu gesto marinho, olhos
    feitos do arremesso do mar
    e a centelha invisível a mover
    os labirintos do vento, cósmica
    serpente

    fogo, teu corpo de medusas
    e feridas vivas, vulcões,
    planeta todo luz, talvez paixão,
    pássaro tatuado nas estrelas,
    coração


    Afonso Henriques Neto

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  • terça-feira, julho 20, 2004

    poesia do mar

    Coisa amar

    Contar-te longamente as perigosas
    coisas do mar. Contar-te o amor ardente
    e as ilhas que só há no verbo amar.
    Contar-te longamente longamente.

    Amor ardente. Amor ardente. E mar.
    Contar-te longamente as misteriosas
    maravilhas do verbo navegar.
    E mar. Amar: as coisas perigosas.

    Contar-te longamente que já foi
    num tempo doce coisa amar. E mar.
    Contar-te logamente como doi

    desembarcar nas ilhas misteriosas.
    Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
    E longamente as coisas perigosas.


    Manuel Alegre

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  • domingo, julho 18, 2004

    poesia do mar

    Inicial

    O dia não é hora por hora.
    É dor por dor,
    o tempo não se dobra,
    não se gasta,
    mar, diz o mar,
    sem trégua,
    terra, diz a terra,
    o homem espera.
    E só
    seu sino
    está ali entre os outros
    guardando em seu vazio
    um silêncio implacável
    que se repartirá
    quando levante sua língua de metal
    onda após onda.

    De tantas coisas que tive,
    andando de joelhos pelo mundo,
    aqui, despido,
    não tenho mais que o duro meio-dia
    do mar, e um sino.

    Eles me dão sua voz para sofrer
    e sua advertência para deter-me.
    Isto acontece para todo o mundo,
    continua o espaço.

    E vive o mar.

    Existem os sinos.



    Pablo Neruda

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  • sexta-feira, julho 16, 2004

    poesia do mar

    Conheço o sal...

    Conheço o sal da tua pele seca
    Depois que o estio se volveu inverno
    De carne repousada em suor nocturno.
    Conheço o sal do leite que bebemos
    Quando das bocas se estreitavam lábios
    E o coração no sexo palpitava.
    Conheço o sal dos teus cabelos negros
    Os louros ou cinzentos que se enrolam
    Neste dormir de brilhos azulados.
    Conheço o sal que resta em minhas mãos
    Como nas praias o perfume fica
    Quando a maré desceu e se retrai.
    Conheço o sal da tua boca, o sal
    Da tua língua, o sal de teus mamilos,
    E o da cintura se encurvando de ancas.
    A todo o sal conheço que é só teu,
    Ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
    Um cristalino pó de amantes enlaçados.
     
    Jorge de Sena

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  • quarta-feira, julho 14, 2004

    poesia do mar

    Mar absoluto

    Foi desde sempre o mar,
    E multidões passadas me empurravam
    como o barco esquecido.

    Agora recordo que falavam
    da revolta dos ventos,
    de linhos, de cordas, de ferros,
    de sereias dadas à costa.

    E o rosto de meus avós estava caído
    pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
    e pelos mares do Norte, duros de gelo.

    Então, é comigo que falam,
    sou eu que devo ir.
    Porque não há ninguém,
    tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

    E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
    Tenho de levar-lhes redes de rezas,
    campos convertidos em velas,
    barcas sobrenaturais
    com peixes mensageiros
    e cantos náuticos.

    E fico tonta.
    acordada de repente nas praias tumultuosas.
    E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
    "Para adiante! Pelo mar largo!
    Livrando o corpo da lição da areia!
    Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"
    Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
    A solidez da terra, monótona,
    parece-mos fraca ilusão.
    Queremos a ilusão grande do mar,
    multiplicada em suas malhas de perigo.

    Queremos a sua solidão robusta,
    uma solidão para todos os lados,
    uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
    e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

    O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
    que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

    O mar é só mar, desprovido de apegos,
    matando-se e recuperando-se,
    correndo como um touro azul por sua própria sombra,
    e arremetendo com bravura contra ninguém,
    e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
    por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

    Não precisa do destino fixo da terra,
    ele que, ao mesmo tempo,
    é o dançarino e a sua dança.

    Tem um reino de metamorfose, para experiência:
    seu corpo é o seu próprio jogo,
    e sua eternidade lúdica
    não apenas gratuita: mas perfeita.

    Baralha seus altos contrastes:
    cavalo, épico, anêmona suave,
    entrega-se todos, despreza ritmo
    jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,
    da sua terminante grandeza despojada.

    Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
    água de todas as possibilidades,
    mas sem fraqueza nenhuma.

    E assim como água fala-me.
    Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
    e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

    Não me chama para que siga por cima dele,
    nem por dentro de si:
    mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
    Não me quer arrastar como meus tios outrora,
    nem lentamente conduzida.
    como meus avós, de serenos olhos certeiros.

    Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
    plástica, fluida, disponível,
    igual a ele, em constante solilóquio,
    sem exigências de princípio e fim,
    desprendida de terra e céu.

    E eu, que viera cautelosa,
    por procurar gente passada,
    suspeito que me enganei,
    que há outras ordens, que não foram ouvidas;
    que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
    e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

    Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
    mas outro, que se parece com ele
    como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
    E entre água e estrela estudo a solidão.

    E recordo minha herança de cordas e âncoras,
    e encontro tudo sobre-humano.
    E este mar visível levanta para mim
    uma face espantosa.

    E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
    E é logo uma pequena concha fervilhante,
    nódoa líquida e instável,
    célula azul sumindo-se
    no reino de um outro mar:
    ah! do Mar Absoluto.


    Cecília Meireles

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  • terça-feira, julho 13, 2004

    poesia do mar

    Quero que o saibas

    Quero que o saibas, linda Inês:
    meu coração é português.
    E dentro do peito fareja latidos
    da alma que há muito me fugiu.

    Ando sem alma, já se vê,
    à procura de não sei quê.
    Talvez um cheiro, uma cor, um som
    - memória do tempo em que eu,
    cidadão de Viseu,
    vivia na bolsa seminal de meu pai.

    O que foi ele buscar no mundo?
    O azul profundo que há nos mares
    quando se os tem interiores;
    novos amores, terras mais vastas.
    Não são assim os descobridores?

    Pois meu coração é assim:
    navegante à deriva, naufrago em mim!


    Eduardo Alves da Costa

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  • segunda-feira, julho 12, 2004

    poesia do mar

    Aqui

    Vim aqui para contar os sinos
    que vivem no mar,
    que soam no mar,
    dentro do mar.

    Por isso vivo aqui


    Pablo Neruda


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  • domingo, julho 11, 2004

    A ti, minha Menina

    O mundo é grande

    O mundo é grande e cabe
    nesta janela sobre o mar.
    O mar é grande e cabe
    na cama e no colchão de amar.
    O amor é grande e cabe
    no breve espaço de beijar.


    Carlos Drummond de Andrade

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  • sábado, julho 10, 2004

    Crise governamental

    Na semana passada, o país desceu à terra. Depois de um mês em euforia, o choque eléctrico dos gregos na final do Euro-2004 varreu todas as ilusões. Agora, batemos no fundo. A crise governamental foi ao encontro do capítulo que muitos portugueses previam, mas que preferiam acreditar no contrário. O cenário de eleições antecipadas foi uma breve e difusa miragem.

    A primeira farpa começou com a renúncia de Durão Barroso ao cargo de primeiro-ministro. Preferiu aceitar o desafio de ser o novo presidente da Comissão Europeia do que continuar à frente dos destinos do país. Por muito que se pense o contrário, fica a sensação que o líder do PSD levou muito a sério o cartão amarelo das eleições europeias. Na primeira oportunidade, disse adeus. Achou que era melhor assim do que ser copiosamente derrotado nas próximas legislativas.

    A segunda farpa aconteceu esta sexta-feira. O presidente da República anunciou que não haverá eleições antecipadas. Pedro Santana Lopes será o novo primeiro-ministro, uma decisão que tem tanto de polémico como de perverso. Fica a sensação que não vivemos em democracia e os cargos são sucessórios. Como na Monarquia. Durão Barroso passou a pasta a Santana Lopes e Jorge Sampaio disse ámen. Como se não bastasse, Ferro Rodrigues demitiu-se do cargo de secretário-geral do PS. Ao menos, uma boa notícia.

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  • quinta-feira, julho 08, 2004

    Remoinhos

    Olho para as fotografias e penso. Ao mesmo tempo viajo. Recuo no tempo, deixo-me ir ao sabor de uma corrente que não me pertence. Observo o teu olhar, tento imaginar os teus gestos, adivinhar cada movimento, o sopro de uma palavra. Repito a dose de novo. O teu olhar, os teus gestos, o mais pequeno movimento e a sílaba de uma única palavra. É encantador. Ver as formas de um rosto que se molda pela passagem do tempo, acompanhar as curvas dos dedos, sentir o respirar, discutir cá dentro as marcas do cabelo, o toque do nariz, o desenho de um sorriso cativante. Depois há aquele olhar em que me perco, mergulhado no teu corpo. Que não se resiste. É uma espécie de maré viva, um remoinho aberto em que a mão se ergue em direcção ao céu, os teus olhos se cravam no passado e o corpo respira segurança, doçura e maturidade. De novo. O teu corpo respira segurança, doçura e maturidade. Tens 40 anos. A fotografia é a preto e branco. Há ainda um assomo de liberdade nos teus olhos, algo de selvagem, ao mesmo tempo fúria e serenidade, ao mesmo tempo guerra e paz, ao mesmo tempo paragem e avanço, ao mesmo tempo afastamento e aproximação. Como se tudo isso fosse possível. Como se a tua boca não pronunciasse uma única palavra. E ficasse cerrada e o teu corpo parasse no tempo, ficasse estático, à espera de uma voz vinda de longe e os teus olhos se guiassem por essa voz. Estás à espera. Esperas aquilo que não vês, mas sentes essa espera à procura do que não tens. E esperas. E desesperas. À espera do que não tens. Queres o que não tens. Aos 40 anos, queres o que não tens. Hoje queres o que não tens. E nada te sacia. E nada te resiste. E nada é nada perante tudo o que tens. Não dizes nada, dizendo tudo. De lábios finos, de mãos abertas e dedos firmes seguras num cigarro e consomes cada minuto, à medida que o vento arrasta um pouco de ti para ninguém. Há em ti tudo. Tens tudo e serás sempre alguém.

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  • quarta-feira, julho 07, 2004

    poesia do mar

    Da minha Janela

    Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
    Num soluçar aflito e murmurado...
    Ovo de gaivotas, leve, imaculado,
    Como neves nos píncaros nascidas!

    Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
    Batendo ainda num arfar pausado...
    Ó meu doce poente torturado
    Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!

    Meu verso de Samain cheio de graça,
    Inda não és clarão já és luar
    Como branco lilás que se desfaça!

    Amor! teu coração trago-o no peito...
    Pulsa dentro de mim como este mar
    Num beijo eterno


    Florbela Espanca

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  • terça-feira, julho 06, 2004

    poesia do mar

    Mar e lua

    Amaram o amor urgente
    As bocas salgadas pela maresia
    As costas lanhadas pela tempestade
    Naquela cidade
    Distante do mar
    Amaram o amor serenado
    Das noturnas praias
    Levantavam as saias
    E se enluaravam de felicidade
    Naquela cidade
    Que não tem luar
    Amavam o amor proibido
    Pois hoje é sabido
    Todo mundo conta
    Que uma andava tonta
    Grávida de lua
    E outra andava nua
    Ávida de mar

    E foram ficando marcadas
    Ouvindo risadas, sentindo arrepios
    Olhando pro rio tão cheio de lua
    E que continua
    Correndo pro mar
    E foram correnteza abaixo
    Rolando no leito
    Engolindo água
    Boiando com as algas
    Arrastando folhas
    Carregando flores
    E a se desmanchar
    E foram virando peixes
    Virando conchas
    Virando seixos
    Virando areia
    Prateada areia
    Com lua cheia
    e à beira-mar


    Chico Buarque

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  • domingo, julho 04, 2004

    Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
    Continuam as noites e os poentes
    Que escorreram na casa e no jardim,
    Continuam as vozes diferentes
    Que intactas no meu ser estão suspensas.
    Trago o terror e trago a claridade,
    E através de todas as presenças
    Caminho para a única unidade.



    Sophia de Mello Breyner Andresen

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  • sábado, julho 03, 2004

    Tempo, apenas e só

    E repete-se de novo. Dizer que parece que foi ontem um pouco de tudo. Um pouco de sabor, de lembranças de um tempo curto. Parece sempre ontem, um ano, dois, três, porque o tempo passa, mais rápido do que as nossas palavras. Passou um ano. Para mim, sabe-me a muito. A mais do que isso, uma eternidade repleta em cada dia, uma lembrança fugaz, quase ténue, de uma semana quente, repleta de sol e de mar. Gastou-se um ano de vida, as férias ficaram para trás, mas parece-me muito mais do que isso. Aquela brisa perdeu-se nos meus olhos, desconheço o cheiro vindo das searas, o calor a derreter o suor dos nossos corpos. Houve um livro que ficou a meio, desconheço o seu conteúdo, quantas páginas ficaram por ler, o que dissemos, porque houve um punhado de meses a passar por cima de nós. Uma montanha de segredos ficou por dizer. Em cada gesto, em cada sorriso, em cada movimento...

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  • "Partiu" ontem, 2 de Julho, esta enorme Poetisa


    A Hora da Partida

    A hora da partida soa quando
    Escurecem o jardim e o vento passa,
    Estala o chão e as portas batem, quando
    A noite cada nó em si deslaça.
    A hora da partida soa quando
    As árvores parecem inspiradas
    Como se tudo nelas germinasse.

    Soa quando no fundo dos espelhos
    Me é estranha e longínqua a minha face
    E de mim se desprende a minha vida.



    Sophia de Mello Breyner Andresen

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  • sexta-feira, julho 02, 2004

    De canto...

    De canto e hora meu nada se enlouquece
    neste espanto de ver e de não ser
    e na pergunta a resposta se empobrece
    sem luz de outra manhã, o acontecer.

    No turbilhão do pequeno
    o breve esquece


    Salette Tavares
    (Moçambique)

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  • quinta-feira, julho 01, 2004

    Verde e vermelho

    Que o homem tem qualquer coisa de especial, tem. Pediu as bandeiras nas varandas dos prédios, o povo fez-lhe a vontade; disse que um português tinha de gritar mais do que um grupo de ingleses, os adeptos responderam-lhe a preceito; apelou para que os portugueses se vestissem de verde e vermelho para combater a onda laranja da Holanda, as pessoas nem pensaram duas vezes.

    Scolari transformou-se no herói da proeza lusitana no Euro-2004. Contestado no início, porque o futebol é fértil neste tipo de fenómenos, ganhou um estatuto como há muito não se via. Tem carisma, sentido de liderança e carrega nos ombros uma carga positiva que nos fazia falta. Somos um país marcado por fatalismos históricos, gostamos de fado, apreciamos a melancolia, cultivamos sentimentos a raiar o pessimismo. Até que chegou o brasileiro e tudo mudou.

    Nada disto acontece por acaso. Seja a crença na Nossa Senhora do Caravaggio, seja a música, ou as bandeiras, ou as pessoas a apoiar a selecção nacional mal o autocarro sai do centro de estágio e se dirige para o estádio. Seja aquilo que for. Há muito que não se via nada assim. Esta onda positiva, de certeza, de ambição, de força, de carisma em torno de um ideal. Nunca o país esteve tão unido em busca de algo, nunca se sentiu tantas certezas em torno de um sonho que pode ser a nossa realidade. Vamos ganhar o Euro-2004, não tenho dúvidas.

    PS: Posso estar a ser um pouco injusto, ou até exagerado, mas fazia-nos falta este alto astral brasileiro. Graças a Scolari...

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  • Lua


    Lua,
    me ensina essa calma
    branca,
    sua.
    Lua,
    me beija a polpa da carne,
    me inscreve
    a maré.
    (Iluminar areia
    estender a onda,
    é lua.)


    Lua,
    me ensina
    essa tua cara aberta
    descosida e nua.
    Sua.
    Lua,
    me mostra
    a estação das vindas,
    os cestos de trigo,
    a multidão dos bóias-frias.



    Lúcia Villares
    (Brasil)

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