sexta-feira, novembro 24, 2006

Poema para Galileo




Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

António Gedeão

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  • quarta-feira, novembro 15, 2006

    O poeta no exílio




    A Portugal

    Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
    Nem é ditosa, porque o não merece.
    Nem minha amada, porque é só madrasta.
    Nem pátria minha, porque eu não mereço
    A pouca sorte de nascido nela.

    Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
    quanto esse arroto de passadas glórias.
    Amigos meus mais caros tenho nela,
    saudosamente nela, mas amigos são
    por serem meus amigos, e mais nada.

    Torpe dejecto de romano império;
    babugem de invasões; salsugem porca
    de esgoto atlântico; irrisória face
    de lama, de cobiça, e de vileza,
    de mesquinhez, de fatua ignorância;
    terra de escravos, cu pró ar ouvindo
    ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
    terra de funcionários e de prostitutas,
    devotos todos do milagre, castos
    nas horas vagas de doença oculta;
    terra de heróis a peso de ouro e sangue,
    e santos com balcão de secos e molhados
    no fundo da virtude; terra triste
    à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
    cheia de afáveis para os estrangeiros
    que deixam moedas e transportam pulgas,
    oh pulgas lusitanas, pela Europa;
    terra de monumentos em que o povo
    assina a merda o seu anonimato;
    terra-museu em que se vive ainda,
    com porcos pela rua, em casas celtiberas;
    terra de poetas tão sentimentais
    que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
    terra de pedras esburgadas, secas
    como esses sentimentos de oito séculos
    de roubos e patrões, barões ou condes;
    ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
    eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
    és mais que cachorra pelo cio,
    és peste e fome e guerra e dor de coração.
    Eu te pertenço mas seres minha, não

    Jorge de Sena

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  • sábado, novembro 11, 2006

    A poesia cantada


    Georges Moustaki - Aphorisme
    (para ouvir, clique no nome acima)

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  • domingo, novembro 05, 2006

    Poesia Latina





    voz numa pedra

    Não adoro o passado
    não sou três vezes mestre
    não combinei nada com as furnas
    não é para isso que eu cá ando
    decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
    decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João]
    nenhuma nenhuma palavra está completa
    nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
    assim também eu nunca te direi o que sei
    a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

    Não digo como o outro: sei que não sei nada
    sei muito bem que soube sempre umas coisas
    que isso pesa
    que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
    acreditando ser ele o agente supremo
    do coração do mundo
    vaso de liberdade expurgada do menstruo
    rosa viva diante dos nossos olhos
    Ainda longe longe essa cidade futura
    onde «a poesia não mais ritmará a acção
    porque caminhará adiante dela»
    Os pregadores de morte vão acabar?
    Os segadores do amor vão acabar?
    A tortura dos olhos vai acabar?
    Passa-me então aquele canivete
    porque há imenso que começar a podar
    passa não me olhas como se olha um bruxo
    detentor do milagre da verdade
    a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol
    coisa nenhuma]
    nada está escrito afinal

    Mário Cesariny

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  • quarta-feira, novembro 01, 2006

    Mulheres na Literatura





    ANJOS MULHERES - VI

    As mulheres voam
    como os anjos
    Com as suas asas feitas
    de cristal de rocha da memória
    Disponíveis
    para voar
    soltas...
    Primeiro
    lentamente uma por uma
    Depois,
    iguais aos pássaros
    fundas...
    Nadando,
    juntas
    Secretas a rasar o
    chão
    a rasar a fenda
    da lua
    não menstruo
    por entre a fenda das pernas
    Às vezes é o aço
    que se prende
    na luz
    A dobrarmos o espaço?
    Bruxas
    pomos asas em vassouras
    de vento
    E voamos
    Como as asas
    lhe cresciam nas coxas
    diziam dela
    que era um anjo do mar
    Rondo alto,
    postas em nudez de ombros
    e pernas
    perseguindo,
    pelos espaços,
    lunares
    da menstruação
    e corpo desavindo
    Não somos violência
    mas o voo
    quando nadamos
    de costas pelo vento
    até à foz do tempo
    no oceano denso
    da nossa própria voz
    Sabemos distinguir
    a dormir
    os anjos das rosas voadoras
    pelo tacto?
    Somos os anjos
    do destino
    com a alma
    pelo avesso
    do útero
    Voamos a lua
    menstruadas
    Os homens gritam
    - são as bruxas
    As mulheres pensam
    - são os anjos
    As crianças dizem
    - são as fadas
    Fadas?
    filigrana cintilante
    de asas volteando
    no fundo da vagina
    Nadamos?
    De costas,
    no espaço deste século
    Mudar o rumo
    e as pernas mais ao
    fundo
    portas por trás
    dobradas pelos rins
    Abrindo o ar
    com o corpo num só golpe
    Soltas,
    voando
    até chegar ao fim
    Dizem-nos
    que nos limitemos ao espaço
    Mas nós voamos
    também
    debaixo de água
    Nós somos os anjos
    deste tempo
    Astronautas,
    voando na memória
    nas galáxias do vento...
    Temos um pacto
    com aquilo que
    voa
    - as aves
    da poesia
    - os anjos
    do sexo
    - o orgasmo
    dos sonhos
    Não há nada
    que a nossa voz não abra
    Nós somos as bruxas da palavra

    Maria Teresa Horta

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