quinta-feira, dezembro 28, 2006

Pela voz contrafeita da poesia




Pela voz contrafeita da poesia

Dá-nos os passos os teus passos
de manhã triunfal de cidade à solta
os gestos que devemos ter
quando a alegria descobrir os dedos
em que possa viver toda a vertigem
que trouxer da noite
os primeiros dedos do sonho
do teu sonho nosso sonho mantido
mesmo no mais íntimo abandono
mesmo contra as portas que sobre nós:
em silêncio e noite
em venenosa ternura
em murmúrio e reza
se fecharam já
mesmo contra os dias vorazes
que por todos os lados nos assaltam
e consomem
mesmo contra o descanso eterno
a viagem fácil
com que nos ameaçam vigiando
todo o percurso do nosso sono
interminável sono coração emparedado
no muro cruel da vida
desta que vivemos que morremos
assim esperando
assim sonhando
sonhando mesmo quando o sonho
ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós
e é o gemido sem boca
a precária luz que nem aos olhos chega

Não digas o teu nome: ele é Esperança
vai até aos que sofrem sozinhos
à margem dos dias
e é a palavra que não escrevem
sobre as quatro paredes do tempo
o admirável silêncio que os defende
ou o sorriso o gesto a lágrima
que deixam nas mãos fiéis

Não digas o teu nome: quem o não sabe
quem não sabe o teu nome de fogo
quem o não viu entrar na sua noite
de pobre animal doente
e tomar conta dela
mesmo só pelo espaço de um sonho

O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam


As coisas também gritam por ti

E as cidades as cidades que morreram
na mesma curva exemplar do tempo
estão hoje em ti são hoje o teu nome
levantam-se contigo na vertigem
das ruas no tumulto das praças
na espera guerrilheira em que perfilas
o teu próprio sono

*

Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono

Onde está o amor a sublime
rosa que os amantes desfolhavam
tão alheios a tudo raptados
pela mão aristocrática do tempo
o amor feito nos braços no regaço
de um tempo fácil
perdulário
vosso

Hoje não é fácil o tempo
já não é vosso o tempo
viajantes do sonho que divide
doces irmãos da rosa
colunas do templo do Imóvel
prudentes amigos da vertigem
deliciados poetas duma angústia
sem vísceras reais
já não é vosso o tempo.

Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo

*

Impossível

Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia

Impossível

Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes

*

Mas de repente voltas
numa dor de esperança sem razão de ser

Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavra!
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação

É tempo de acordar nas trevas do real
na desolada promessa
do dia verdadeiro

*

Nesta luz quase louca
que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mais bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo


Alexandre O´Neill
Poesias Completas
1951/1981


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  • quarta-feira, dezembro 20, 2006

    Um poema de Natal





    FALAVAM-ME DE AMOR

    Quando um ramo de doze badaladas
    se espalhava nos móveis e tu vinhas
    solstício de mel pelas escadas
    de um sentimento com nozes e com pinhas,

    menino eras de lenha e crepitavas
    porque do fogo o nome antigo tinhas
    e em sua eternidade colocavas
    o que a infância pedia às andorinhas.

    Depois nas folhas secas te envolvias
    de trezentos e muitos lerdos dias
    e eras um sol na sombra flagelado.

    O fel que por nós bebes te liberta
    e no manso natal que te conserta
    só tu ficaste a ti acostumado.



    Natália Correia

    O Dilúvio e a Pomba
    Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979

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  • domingo, dezembro 10, 2006

    Mulheres na Literatura



    Reaprender o mundo
    em prisma novo;
    pequena bátega de sol a resolver-se
    em cisne,
    sereia harmonizando o universo

    Só o vento sucumbe
    à demais luz,
    e só o vento,
    como alaúde azul,
    repete devagar os mesmos sons;

    Não interessa onde estou,
    não me faz falta um mapa
    de viagem

    Os teus dedos traçaram
    ligeiríssima rota no meu corpo
    e a curva topográfica
    sem tempo
    aí ficou, como sorriso, ou foz
    de um rio sem nome
    Não interessa onde estou:
    esta linha de abetos ou pinheiros
    que em declive se estende, branda,
    leve, e se debruça em mar,
    pode ser tudo

    Pode mesmo ir buscar o cisne
    ao verso acima
    e colocá-lo aqui, sobre este verso,
    agora,
    ou desorganizar um terço
    da sereia e transformá-la
    em ilha resumida
    de uma paz qualquer


    Não interessa onde
    Estou

    Diz-se que os gregos
    tinham cinco formas para falar
    de amor.
    Nós temos uma só, onde não cabe
    o quase paradoxo
    de que amor é tudo e que dele sabemos.
    Nada mais

    Era bom ter no verso
    as formas todas, essas palavras todas
    sempre à mão: pequeno dicionário
    que soubesse de paisagens
    de dentro: Que cores? Quantas
    molduras?

    Não resistir ao tempo

    Não sei se os gregos tinham várias
    formas para falar da morte,
    nem mesmo sei se o amor
    foi buscar alguma dessas formas
    para se definir

    Há literatura que fala do que está
    a montante do amor,
    mas não lhe está – eros, tanatos,
    a sua ligação, o seu estar-
    entre-estar

    Mas tudo o que se sabe
    repete-se em trajecto de sereia,
    enigma de sereia
    transmutada em cisne

    Diz-me que só na morte
    o cisne canta

    Mas é preciso organizar o vento
    de forma a que o seu passo
    seja mais que azul

    Peço ao vento algum som,
    alguma imagem
    que seja tão brilhante e deslumbrada
    como estas que aqui estão
    à minha frente

    Mas não responde o vento,
    implausível que é o seu falar

    A rota que traçaste permanece,
    embora, e o corpo
    reconhece-lhe o toque
    desses dedos

    Onde fica o que está descrito
    em verso
    no meio de tudo isto?

    Onde se escondem as palavras
    todas?
    Sei que preciso de uma forma nova,
    que precisava de palavra nova
    para a moldura, ou cor

    Era essa aprendizagem
    de um olhar
    que me faltava agora

    - sobra somente o sol
    iluminando o sítio onde é inútil
    o mapa de viagem
    Tudo o resto: inventado
    há mais de três mil anos,
    por entre templos, degraus onde, sentados:
    discípulos de ausente obediência

    Recorro ao alaúde,
    - mas só o verso fala
    e me responde

    Traços rimados, círculos
    em fogo, fragmentos com que inundam
    as palavras já escritas

    Colo nelas o selo deste mar
    e sonho que são estas as palavras.
    Nesta manhã de sol,
    olho-as assim,
    sabendo-as de algum tempo,
    quase templos sagrados em que pinto
    o dia a cores,
    que nem herdadas de mil gerações

    Numa tradição nula de viagem,
    são o único ponto
    a resistir

    Tudo o resto: invenção
    mais que plasmada,
    multiplicados séculos
    por cem

    Mais de quatro mil anos
    sobre o tempo novo,
    e nada novo abaixo
    deste sol


    Talvez só este
    abismo.

    Interrompo no mapa
    o precipício?


    No traço dos teus dedos
    rota onde quase cabem: sereia,
    o alaúde, o tempo,
    nessa rota
    - o suspendo


    Ana Luísa Amaral

    [in A Génese do Amor]

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  • quarta-feira, dezembro 06, 2006

    Auto-retrato com a musa




    Auto-retrato com a musa

    1.

    vejo-me ao espelho: a cara
    severa dos sessenta,
    alguns cabelos brancos,
    os óculos por vezes
    já mais embaciados.

    sobrancelhas espessas,
    nariz nem muito ou pouco,
    sinal na face esquerda,
    golpe breve no queixo
    (andanças da gilette).

    ia a passar fumando
    mais uma cigarrilha
    medindo em tempo e cinza
    coisas atrás de mim.
    que coisas? tantas coisas,

    palavras e objectos,
    sentimentos, paisagens.
    também pessoas, claro,
    e desfocagens, tudo
    o que assim se mistura

    e se entrevê no espelho,
    tingindo as suas águas
    de um dúbio maneirismo
    a que hoje cedo. e fico
    feito de tinta e feio.

    2

    quem amo o que é que pode
    fazer deste retrato?
    nem sabê-lo de cor,
    nem tê-lo encaixilhado,
    nem guardá-lo num livro,

    nem rasgá-lo ou queimá-lo,
    mas pode pôr-se ao lado
    e ter prazer ou pena
    por nos achar parecidos
    ou não achar. quem amo

    não fica desenhado,
    fica dentro de mim
    e é quando mais me apago
    e deixo de me ver
    e apenas me confundo,

    amador transformado
    na própria coisa amada
    por muito imaginar.
    assim nem john ashberry,
    nem o parmegianino,

    nem espelho convexo,
    nem mesmo auto-retrato.
    só uma sombra que é
    na sombra de quem amo
    provavelmente a minha.

    3

    quem amo tem cabelos
    castanhos e castanhos
    os olhos, o nariz
    direito, a boca doce.
    em mais ninguém conheço

    tal porte do pescoço
    nem tão esguias mãos
    com aro de safira,
    nem tanta luz tão húmida
    que sai do seu olhar,

    nem riso tão contente,
    contido e comovente,
    nem tão discretos gestos,
    nem corpo tão macio
    quem amo tem feições

    de uma beleza grave
    e música na alma
    flutua nas volutas
    de um madrigal antigo
    em ondas de ternura.

    é quando eu sinto a musa
    pousando no meu ombro
    sua cabeça, assim
    me enredo horas a fio
    e fico a magicar.

    Vasco Graça Moura

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