terça-feira, fevereiro 27, 2007

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.







Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis

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  • sexta-feira, fevereiro 23, 2007

    Zeca Afonso - Vinte anos após...





    Utopia


    Cidade
    Sem muros nem ameias
    Gente igual por dentro
    gente igual por fora
    Onde a folha da palma
    afaga a cantaria
    Cidade do homem
    Não do lobo mas irmão
    Capital da alegria

    Braço que dormes
    nos braços do rio
    Toma o fruto da terra
    E teu a ti o deves
    lança o teu
    desafio

    Homem que olhas nos olhos
    que não negas
    o sorriso a palavra forte e justa
    Homem para quem
    o nada disto custa
    Será que existe
    lá para os lados do oriente
    Este rio este rumo esta gaivota
    Que outro fumo deverei seguir
    na minha rota?

    ZECA AFONSO

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  • terça-feira, fevereiro 06, 2007

    Poesia Latina




    Alfabeto do mundo


    Em vão me demoro soletrando
    o alfabeto do mundo.
    Leio nas pedras um escuro pranto,
    ecos afogados em torres e edifícios,
    indago a terra pelo tato
    cheia de rios, paisagens e cores,
    mas ao copiá-los sempre me equivoco.
    Necessito escrever preso a uma linha
    Sobre o fio do horizonte.
    Desenhar o milagre desses dias
    Que flutuam envoltos na luz
    E se desprendem em cantos de pássaros.
    Quando na rua os homens que perambulam
    Do seu rancor a sua fadiga, cavilando,
    Se me revelam mais do que nunca inocentes.
    Quando o trapaceiro, o astuto, a adultera ,
    Os mártires do ouro ou do amor
    São só signos que não li bem,
    Que ainda não consigo anotar no meu caderno.
    Quanto quisera, ao menos um instante
    Que esta plana febril de poesia
    Grave na sua transparência cada letra:
    O "o" do ladrão, o "t" do santo
    o gótico ditongo do corpo e seu desejo,
    com a mesma escritura do mar nas areias,
    a mesma cósmica piedade
    que a vida abre na frente dos meus olhos.

    Eugenio Montejo
    (Venezuela 1938)


    [Tradução Hector Zanetti]

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