sexta-feira, março 30, 2007

"Poema Introdutório"

Aquilo de que o homem despojou as coisas
não lhes faz falta
porque elas continuam a ser do mesmo modo.

Mas há um cavalo de ventas mornas
com patas como qualquer cavalo e asas como nenhum...
( As rédeas são notas agudas de flauta
e o flanco fácil e sereno).
O seu nascer é ininterrupto
para morrer amanhã.
- E tal não acontece ao mesmo tempo por um truque de câmbio,
para que a morte não perca o seu valor extrínseco
nas obsessões da água
e na alegria dos bichos,
enquanto permanece inefável a conjugação de sexos nas árvores.

Mas não bastam as asas ao cavalo:
São necessárias as patas,
imprescindíveis as patas do cavalo
- funcionais, autênticas, terríveis -
porque as patas do Pégaso são falsas
à força de tanto desdobrarem asas subservientes.

Asas? Quase inúteis...
Se as patas forem patas
capazes de bradar no solo surdo,
o céu há-de baixar-se para que o cavalo o penetre.

Francisco Arcos

  • |
  • "Estirpe e Atavismo"

    Vejo-me nu nas mãos dum Gulliver. Distantes,
    como as memórias dum lusíada marujo,
    as minhas farsas de ontem vão, num porão sujo,
    na emigração comum dos que procuram o antes.


    ( No princípio era o Caos? Não creio ). E garatujo
    cálculos de álgebra que nunca soube: Instantes
    da minha mágoa relativa, asas errantes,
    porões onde eu, entre barris com álcool, fujo.


    Ultrapassei-me. O agora é fútil. Que me importa?
    Nas mãos de Gulliver sou como espinha morta
    já sem medula.
    - Ó rouxinol de Bernardim,


    responde antes que caias de entre a fronde:
    “ Menina e moça me levaram...” - para onde?
    ( Há uma reminiscência, um luxo infame e um fim ).

    Francisco Arcos

  • |
  • terça-feira, março 27, 2007

    "Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos"





    E aqui estou eu,
    ausente diante desta mesa -
    e ali fora o Tejo.
    Entrei sem lhe dar um só olhar.
    Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
    e saudá-lo deste canto da praça:
    "Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
    Não, não olhei.
    Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
    me lembrei que estavas aí, Tejo.
    Passei e não te vi.
    Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
    Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando
    Pessoa se sentava,
    contigo e os outros invisíveis à sua volta,
    inventando vidas que não queria ter.
    Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
    Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
    tudo indiferença e falta de resposta.
    Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
    e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
    Tejo que não és da minha infância,
    mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
    majestade sem par nos monumentos dos homens,
    imagem muito minha do eterno,
    porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
    porque tens vida, sobretudo,
    meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
    Eu que me esqueci de te olhar!

    Adolfo Casais Monteiro

  • |
  • sexta-feira, março 16, 2007

    "Reconhecimento à Loucura"




    Já alguém sentiu a loucura
    vestir de repente o nosso corpo?
    Já.
    E tomar a forma dos objectos?
    Sim.
    E acender relâmpagos no pensamento?
    Também.
    E às vezes parecer ser o fim?
    Exactamente.
    Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
    Tal e qual.
    E depois mostrar-nos o que há-de vir
    muito melhor do que está?
    E dar-nos a cheirar uma cor
    que nos faz seguir viagem
    sem paragem
    nem resignação?
    E sentirmo-nos empurrados pelos rins
    na aula de descer abismos
    e fazer dos abismos descidas de recreio
    e covas de encher novidade?
    E de uns fazer gigantes
    e de outros alienados?
    E fazer frente ao impossível
    atrevidamente
    e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
    a ponto do impossível ficar possível?
    E quando tudo parece perfeito
    poder-se ir ainda mais além?
    E isto de desencantar vidas
    aos que julgam que a vida é só uma?
    E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

    Tu Só, loucura, és capaz de transformar
    o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
    Só tu és capaz de fazer que tenham razão
    tantas razões que hão-de viver juntas.
    Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
    Só tu tens asas para dar
    a quem tas vier buscar

    José de Almada Negreiros

  • |
  • terça-feira, março 13, 2007

    "Há cidades cor de pérola onde as mulheres"


    Há cidades cor de pérola onde as mulheres
    existem velozmente. Onde
    às vezes param, e são morosas
    por dentro. Há cidades absolutas,
    trabalhadas interiormente pelo pensamento
    das mulheres.
    Lugares límpidos e depois nocturnos,
    vistos ao alto como um fogo antigo,
    ou como um fogo juvenil.
    Vistos fixamente abaixados nas águas
    celestes.
    Há lugares de um esplendor virgem,
    com mulheres puras cujas mãos
    estremecem. Mulheres que imaginam
    num supremo silêncio, elevando-se
    sobre as pancadas da minha arte interior.

    Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
    Emoções onde vivo sem orelhas
    nem dedos. Onde consumo
    uma amizade bárbara. Um amor
    levitante. Zona
    que se refere aos meus dons desconhecidos.
    Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
    pensadores. Para que algumas mulheres
    sejam cândidas. Para que alguém
    bata em mim no alto da noite e me diga
    o terror de semanas desaparecidas.
    Eu durmo no ar dessas cidades femininas
    cujos espinhos e sangues me inspiram
    o fundo da vida.
    Nelas queimo o mês que me pertence.
    o minha loucura, escada
    sobre escada.

    Mulheres que eu amo com um desespero
    fulminante, a quem beijo os pés
    supostos entre pensamento e movimento.
    Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
    com alegria. Em que toco levemente
    Imente a boca brutal.
    Há mulheres que colocam cidades doces
    e formidáveis no espaço, dentro
    de ténues pérolas.
    Que racham a luz de alto a baixo
    e criam uma insondável ilusão.

    Dentro de minha idade, desde
    a treva, de crime em crime - espero
    a felicidade de loucas delicadas
    mulheres.
    Uma cidade voltada para dentro
    do génio, aberta como uma boca
    em cima do som.
    Com estrelas secas.
    Parada.

    Subo as mulheres aos degraus.
    Seus pedregulhos perante Deus.
    É a vida futura tocando o sangue
    de um amargo delírio.
    Olho de cima a beleza genial
    de sua cabeça
    ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
    no meu pensamento quente.

    Herberto Helder

  • |
  • segunda-feira, março 05, 2007

    Poesia Latina





    Viver sempre também cansa!

    "Viver sempre também cansa!
    O sol é sempre o mesmo e o céu azul
    ora é azul, nitidamente azul,
    ora é cinza, negro, quase verde...
    Mas nunca tem a cor inesperada.
    O Mundo não se modifica.
    As árvores dão flores,
    folhas, frutos e pássaros
    como máquinas verdes.
    As paisagens também não se transformam.
    Não cai neve vermelha,
    não há flores que voem,
    a lua não tem olhos
    e ninguém vai pintar olhos à lua.
    Tudo é igual, mecânico e exacto.
    Ainda por cima os homens são os homens.
    Soluçam, bebem, riem e digerem
    sem imaginação.
    E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
    discursos de Mussolini,
    guerras, orgulhos em transe,
    automóveis de corrida...
    E obrigam-me a viver até à Morte!
    Pois não era mais humano
    morrer por um bocadinho,
    de vez em quando,
    e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
    Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
    morrer em cima dum divã
    com a cabeça sobre uma almofada,
    confiante e sereno por saber
    que tu velavas, meu amor do Norte.
    Quando viessem perguntar por mim,
    havias de dizer com teu sorriso
    onde arde um coração em melodia:
    "Matou-se esta manhã.
    Agora não o vou ressuscitar
    por uma bagatela."
    E virias depois, suavemente,
    velar por mim, subtil e cuidadosa,
    pé ante pé, não fosses acordar
    a Morte ainda menina no meu colo..."

    José Gomes Ferreira

  • |
  • a href="http://www.haloscan.com/">Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com