quarta-feira, abril 11, 2007

[Quando eu vir vaguear por dentro da casa]



Quando eu vir vaguear por dentro da casa
o abeto que cresceu no bosque, hei-de
ajoelhar no soalho. Todas as coisas
comunicam entre si a totalidade das suas formas.
A mão que vai surgir do abeto apontará para mim.

Tenho de despir as tiras de brocado que envolvem as veias,
as cadeias de ouro dos rins. Deixar
que as unhas longas da árvore passem
entre mim e o imo dos quartos interiores da casa.

Se essa figura imponente, a árvore, me reconhecer,
vou interromper o que escrevo, esperar ansiosa
atracção que a insónia desse vulto
há - de exercer sobre mim. Rodo
até à tontura da morte.
Torturo-me
até à alegria. Encontro na casa
o tema da despossuição e a agonia.

A pobreza antiga com que o corpo cai
para uma vala. Preso apenas às pérolas
que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar,
com os cânones clássicos, como se o poema
fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras
da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar
a sua configuração. Querem ser
reais, quando se aproximam.
Vai para diante da minha face, ao fundo.
Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel
enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão
arrasta a forma táctil até à passagem do poema.

Sou eu que me vergo ao domínio.
Que me poise a marca incandescente na testa.
Tocará na meninge como num cofre.
Aceito coroas para depor sobre mim.
Deixo os pés do abeto empurrar
com a biqueira violetas. A fragrância
delas leva-me a imaginar poemas
em branco. Depois de percorrer um longo encadeamento
de sílabas sou outra. Vejo assomar a natureza nua.


Fiama Hasse Pais Brandão

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  • "Poema dum Funcionário Cansado"


    A noite trocou-me os sonhos e as mãos
    dispersou-me os amigos
    tenho o coração confundido e a rua é estreita
    estreita em cada passo
    as casas engolem-nos
    sumimo-nos
    estou num quarto só num quarto só
    com os sonhos trocados
    com toda a vida às avessas a arder num quarto só
    Sou um funcionário apagado
    um funcionário triste
    a minha alma não acompanha a minha mão
    Débito e Crédito Débito e Crédito
    a minha alma não dança com os números
    tento escondê-la envergonhado
    o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
    e debitou-me na minha conta de empregado
    Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
    Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
    Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
    Soletro velhas palavras generosas
    Flor rapariga amigo menino
    irmão beijo namorada
    mãe estrela música
    São as palavras cruzadas do meu sonho
    palavras soterradas na prisão da minha vida
    isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
    num quarto só

    António Ramos Rosa

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