domingo, junho 24, 2007

Escrevo-te com o fogo e a água











Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

António Ramos Rosa


[Volante Verde - 1986
in Antologia Poética
Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes ]

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  • domingo, junho 17, 2007

    Poesia Africana

    Infância perdida

    Nesse tempo, Edelfride,
    Com quatro macutas
    A gente comprava
    Dois pacotes de ginguba
    Na loja do Guimarães.


    Nesse tempo, Edelfride,
    com meio angolar
    a gente comprava
    cinco mangas madurinhas
    no Mercado de Benguela.

    Nesse tempo, Edelfride,
    montados em bicicletas
    a gente fugia da cidade
    e ia prás pescarias
    ver as traineiras chegar
    ou então
    à horta do Lima Gordo
    no Cavaco
    comer amoras fresquinhas.

    Nesse tempo, Miau,
    (alcunha que mantiveste no futebol)
    nós fazíamos gazeta
    da escola coribeca
    e íamos os quatro
    jogar sueca
    debaixo da mandioqueira.

    Era no tempo
    em que o Saraiva Cambuta batia na mulher
    e a gente gostava de ver a negra levar porrada.

    Era no tempo
    dos dongos da ponte
    dos barcos de bimba
    dos carrinhos de papelão

    Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

    Era no tempo do visgo
    que a gente punha na figueira brava
    para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
    os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
    que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.

    Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.

    Mais tarde
    vieram os passeios noturnos
    à Massangarala
    e ao Bairro Benfica.
    E o Bairro Benfica ao luar
    O poeta Aires a cantar
    (meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)
    Tudo era bonito nesse tempo
    até o Salão Azul dos Cubanos
    e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.

    Foi então que a vida me levou para longe de ti:
    parti para estudar na Europa
    mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
    meu companheiro mulato dos bancos de escola
    porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
    cheia de chipipa da mafumeira.
    Tu me ensinaste a compreender e a amar
    os negros velhos do bairro Benfica
    e as negras prostitutas da Massangarala
    (lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
    [essa mulata...)
    Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua
    de Benguela:
    era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
    quando a gente vai na Escola da Liga.
    Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
    Infância Perdida
    sonhos dos tempos de menino.

    Tudo isso te devo
    companheiro dos bancos de escola
    isso
    e o aprender a subir
    aos tamarineiros
    a caçar bituítes com fisga
    aprender a cantar num kombaritòkué
    o varre das cinzas
    do velho Camalundo.
    Tudo isso perpassa
    me enche de sofrimento.

    Diz a tua Mãe
    que o menino branco
    um dia há-de voltar
    cheio de pobreza e de saudade
    cheio de sofrimento
    quase destruído pela Europa.

    Ele há-de voltar
    para se sentar à tua mesa
    e voltar a comer contigo e com teus irmãos
    e meus irmãos
    aquela moambada de domingo
    com quiabos e gengibre
    aquela moambada que nunca mais esqueci
    nos longos domingos tristes e invernais da Europa
    ou então
    aquele calulu
    de dona Ema.

    Diz a tua Mãe, Edelfride,
    que ela ainda me há-de beijar como fazia
    quando eu era menino
    branco
    bem tratado
    quando fugia da casa de meus Pais
    para ir repartir a minha riqueza
    com a vossa pobreza.
    Diz tudo isso a toda a gente
    que ainda se lembra de mim.
    Diz-lhes. Diz-lhes
    grita-lhes
    aos ouvidos
    ao vento que passa
    e sopra nas casuarinas da Praia Morena.
    Diz aos mulatos e brancos e negros
    que foram nossos companheiros de escola
    que te escrevo este poema
    chorando de saudade
    as veias latejando
    o coração batendo
    de Esperança, de Esperança
    porque ela
    a Esperança
    (como dizia aquele nosso poeta
    que anda perdido nos longes da Europa)
    está na Esperança, Amigo.

    Edelfride, você não chore
    saudades do Castimbala
    nem lhe escreva
    cartas como essa
    que são de partir
    meu pobre coração.

    Nesse tempo, Edelfride,
    Infância Perdida
    era no tempo dos tamarineiros em flor...

    Ernesto Lara Filho
    (Angola)

    [Antologia de poesia da Casa dos
    Estudantes do Império - Angola e
    S. Tomé e Príncipe]

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