terça-feira, fevereiro 10, 2004


COMO SE FOSSE A PRIMEIRA VEZ


«O que escrevo exige a minha morte. Confundi a minha vida com o que escrevia. A ponto de deixar de saber o que era uma coisa, o que era a outra. Confundi-me demasiado a mim próprio. Não só escrevia o que me acontecia, como me acontecia o que escrevia. É verdade, embora pareça mentira. Sim, a verdade e a mistificação começaram a tornar-se pouco a pouco indistintas, como um sim e um não. Ignorava que não era um jogo, antes pelo contrário. No princípio até brincava com isso. Só depois vieram os primeiros arrepios e o susto. Se soubesse não me tinha metido nisto. Espero ainda ir a tempo. Conhecia-me tão pouco, tão suave a ilusão. O que escrevo exige a minha morte. É uma frase que me vem à cabeça insistentemente. Tento afastá-la e ela volta, não me larga.

Foi contigo que comecei, é contigo que quero acabar. Parece justo assim. Pelo menos um resto de justiça. Como se fosse preciso. E tudo começou por ser uma simples história, uma história que escrevíamos os dois à volta de uma mesa, numa mesma máquina de escrever. Já era mentira, embora tão inofensiva que mais parecia uma brincadeira de crianças. Mas não era. Porque qualquer história se vive sozinho e quanto mais se escreve mais vai crescendo em volta a solidão.»
(…)

(Pedro Paixão in Fotografia de Grupo – Antologia de Contos)

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