A minha confissão de Abril
Não sei o que é Abril na sua essência mais profunda. Sou um dos muitos «putos» deste país que nasceu depois da revolução, desconheço o que foi viver em censura, o que custava o silêncio de palavras amordaças, o que doía a repressão no mínimo comportamento mais ofensivo. Desconheço isso tudo. Confesso. Muitas vezes, dou por mim a pensar o que seria viver longe do sossego da liberdade e perto da vigilância do poder arcaico e carregado de simbolismos, mas não consigo penetrar nesse mundo de mantos negros e de sombras pesadas.
Mas sei o quanto foi importante a revolução, o que esteve na sua génese (já antes escrevi um post sobre Humberto Delgado, um homem muitas vezes esquecido), o que motivou a saída à rua de vários militares para cercar a fonte de todos os medos. Sempre estive a par do fenómeno. O meu pai sempre me explicou esse doce despertar de consciências, sempre invejei o brilho do olhar dele nas nossas primeiras conversas políticas. Há uma distância entre nós que personifica o fosso entre as gerações do antes e depois de Abril, aquelas que viveram a revolução com o encanto bem típico da juventude e, as outras, que apenas ouvem falar do que foi o pontapé no regime em conversas privadas.
Por isso, arrisco-me a dizer que o fenómeno de Abril tende a terminar. Trinta anos depois do grande abanão do país, ainda há memórias de gente viva, mas quando essa gente fechar os olhos a carga simbólica dos cravos vermelhos chegará ao fim. O 25 de Abril será mais um feriado como o 5 de Outubro, um dia de descanso que dá jeito, especialmente quando calha à sexta-feira e serve de motivo para um bom fim-de-semana prolongado e longe de casa. As músicas de intervenção, os versos furiosos e bem laborados para escapar à censura perderão aquele encanto açucarado de ser fúria e serenidade no mesmo instante. Ninguém saberá o que significam, o que transmitem e o que personificam. Só quem viveu aquele agitado despertar pode descodificar e sentir todas as melodias e destrinçar a sucessão das imagens a preto e branco que nos assaltam na televisão.
Depois da meia-noite estava na rua, o fogo de artifício cruzou os céus, deu cor e vida ao escuro, um grito soltou-se e, de repente, o silêncio personificou tudo à medida que observava a multidão: só os mais velhos, aqueles que têm a idade dos meus pais, ou os outros ainda, provavelmente com idade para serem meus avós, erguiam cravos vermelhos como bandeira de uma liberdade que despertou ao sabor da revolução. Isso personifica aquilo que penso. O fenómeno na sua essência tende a acabar, infelizmente. Mas o 25 de Abril será sempre nosso. Meu e vosso.
PS. Este texto não é um exercício pessimista sobre o 25 de Abril, é uma mera opinião realista de um jovem de 26 anos. Os leitores, como sempre, podem comentar na caixa abaixo. São sempre bem-vindos.
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