Lembranças, 1
Há profissões que fazem parte do nosso imaginário infantil, moldam-nos sonhos e alimentam-nos vontades. Já fomos um pouco de tudo. Desde o homem do talho, ao taxista, passando ainda pelo mecânico de automóveis. As crianças têm sempre uma visão romântica do mundo. Mas, às vezes, parecem saber o que custa trabalhar de sol-a-sol, de enxada na mão, ou no alto-mar à procura de peixe, porque vêem no lavrador e no pescador dois heróis ao nível do Super-Homem e do Homem-Aranha. É curioso. Agora, muitos de nós desprezam tão nobres actividades. Por isto, ou por aquilo, pouco importa. Já quisemos ser bombeiros, polícias, canalizadores e até doentes - é verdade, quem não se lembra? - quando brincávamos aos médicos. E agora?
Houve profissões que nos inspiraram e foram capazes de nos ajudar a construir os alicerces da própria realidade. Já aqui falei dos sinaleiros, dos gestos expressivos do homem-das-luvas-brancas, como se fosse um actor e a avenida se transformasse no seu palco predilecto durante a tarde, mas hoje apetece-me falar dos cobradores. Já não existem. As novas tecnologias fizeram o favor de atirá-los para um canto, provavelmente foram reformados antes do tempo ou tiveram de optar por outro modo de vida. Havia ali qualquer coisa de inexplicável. Chamava-me a atenção a pasta na mão, com a aba dobrada ao contrário, de um lado os recibos, do outro o dinheiro.
Apreciava os dedos do homem, a tactear o papel, a verificar a morada, a certificar-se da quantia exacta que o cliente - a palavra «consumidor» é uma modernice - tinha de pagar. Havia ali qualquer coisa de diferente. Não sei porquê. Talvez porque achasse piada àquele ritual. Todos os meses, o homem das suíças largas batia à porta, a minha avó ia buscar o porta-moedas, pagava a conta da luz ou da água e a perguntava se a vizinha do lado estava em casa. Se a resposta fosse negativa, pagava a quantia em dívida e ficava com o respectivo recibo. Era mais do que uma simples relação de confiança. Muito mais do que isso.
Mas nos tempos que correm os cobradores não tinham o seu espaço. Às vezes, penso nisso. Porque vivemos fora de casa, ou a trabalhar, ou na esplanada do café, ou porque queremos ir às compras e não estamos para ficar rodeados por quatro paredes. Tudo mudou. Não sei se para melhor ou para pior. Hoje as contas são pagas no multibanco. Basta meter o cartão na máquina - «máquina», aqui está a palavra chave -, digitar o código e proceder à respectiva operação. As dívidas são bem maiores do que no passado. Paga-se mais pelo metro cúbico da água, muito mais. Se o cobrador nos aparecesse em casa, de repente, nem estaríamos prevenidos para saldar o montante da dívida em dinheiro vivo. Hoje consumimos, hoje somos consumidores e temos de ser modernos para consumir, mais, sempre muito mais.
Lembro-me também de outro ritual. Quando batia à porta o contador - sim, o homem que contava a luz e a água e examinava de lanterna na mão os respectivos contadores, apontando os valores num caderninho quadriculado. E a minha avó tinha a chave da vizinha do lado - sim, «a chave» de casa da vizinha do lado - e ia a correr abrir a porta para que a pobre da senhora não tivesse de pagar o dobro no mês seguinte. Hoje não confiamos em ninguém, nem no simpático casal que mora no lado esquerdo. Também se fazem estimativas. Liga-se para a companhia e debita-se a contagem, às vezes, numa máquina. É simples e frio como um cubo de gelo. Como o Mundo em que vivemos.
Curiosamente, meus amigos, nunca me deu na cabeça dizer «quando for grande quero ser cobrador». Ele há coisas...
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