quinta-feira, julho 08, 2004

Remoinhos

Olho para as fotografias e penso. Ao mesmo tempo viajo. Recuo no tempo, deixo-me ir ao sabor de uma corrente que não me pertence. Observo o teu olhar, tento imaginar os teus gestos, adivinhar cada movimento, o sopro de uma palavra. Repito a dose de novo. O teu olhar, os teus gestos, o mais pequeno movimento e a sílaba de uma única palavra. É encantador. Ver as formas de um rosto que se molda pela passagem do tempo, acompanhar as curvas dos dedos, sentir o respirar, discutir cá dentro as marcas do cabelo, o toque do nariz, o desenho de um sorriso cativante. Depois há aquele olhar em que me perco, mergulhado no teu corpo. Que não se resiste. É uma espécie de maré viva, um remoinho aberto em que a mão se ergue em direcção ao céu, os teus olhos se cravam no passado e o corpo respira segurança, doçura e maturidade. De novo. O teu corpo respira segurança, doçura e maturidade. Tens 40 anos. A fotografia é a preto e branco. Há ainda um assomo de liberdade nos teus olhos, algo de selvagem, ao mesmo tempo fúria e serenidade, ao mesmo tempo guerra e paz, ao mesmo tempo paragem e avanço, ao mesmo tempo afastamento e aproximação. Como se tudo isso fosse possível. Como se a tua boca não pronunciasse uma única palavra. E ficasse cerrada e o teu corpo parasse no tempo, ficasse estático, à espera de uma voz vinda de longe e os teus olhos se guiassem por essa voz. Estás à espera. Esperas aquilo que não vês, mas sentes essa espera à procura do que não tens. E esperas. E desesperas. À espera do que não tens. Queres o que não tens. Aos 40 anos, queres o que não tens. Hoje queres o que não tens. E nada te sacia. E nada te resiste. E nada é nada perante tudo o que tens. Não dizes nada, dizendo tudo. De lábios finos, de mãos abertas e dedos firmes seguras num cigarro e consomes cada minuto, à medida que o vento arrasta um pouco de ti para ninguém. Há em ti tudo. Tens tudo e serás sempre alguém.

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