O monstro
Nunca escrevi aqui esta passagem. Na escola primária sofri a bom sofrer nas mãos de uma professora arcaica e devorada por problemas pessoais que a obrigavam a descarregar as frustrações acumuladas de uma vida menor. Acho que eram mesmo problemas pessoais para não falar de um distúrbio psíquico qualquer - talvez fosse isso, um distúrbio psíquico qualquer. Eu era uma das vítimas. Eu e os outros - talvez mais os outros - porque o meu eterno medo de falhar levava-me a ser um aluno cumpridor até ao último extremo. Mas lembro-me que o medo - o medo, mais uma vez o medo - era muitas vezes uma barreira à minha capacidade, um muro que nascia à frente do meu caminho e impedia-me de canalizar os meus conhecimentos em função dos desafios. Esse medo era duplo. Mais do que duplo. Medo da professora; medo de falhar; medo de ter medo; medo que sugava as minhas capacidades de aluno atento e de criança inteligente. M-e-d-o. E ponto final.
Todas as noites adormecia a pensar no monstro e acordava a pensar no monstro. O caminho de casa para a escola era feito com o monstro no horizonte. Chocava-me a violência física, bruta e desmedida que o monstro destilava nos meus colegas. Chegava a situações traumáticas de violência pura, em que os alvos predilectos eram sempre os mesmos. Os meus colegas mais necessitados financeiramente, mais desacompanhados pelos pais e mais carentes eram aqueles que mais sofriam nas mãos do monstro. Lembro-me bem. Jamais esquecerei aquelas imagens tristes, a raiar o pânico, de caras geladas e de vozes ainda mais geladas a pedir de socorro; das mãos trémulas e vermelhas como o inferno à medida que a régua avançava vezes sem conta. E isso revoltava-me. Toda aquela cobardia revoltava-me muito.
Na semana passada, cruzei-me com a minha professora da escola primária. Ela lia um livro atentamente. Não mudou muito. O cabelo louro continua imponente, o rosto mantém as mesmas linhas, embora esteja mais magra e as verrugas se acumulem na zona da boca. Fiquei a olhá-la durante longos segundos. Parei. Pensei. Olhei-a e pensei de novo naquelas imagens, senti que o tempo avançou como um cavalo em fúria durante vinte anos. Não senti nada. Nem dor, nem ódio, nem raiva, nem ternura, nem romantismo. Não senti nada. Absolutamente nada. Continuei a olhá-la. Estava a ler. De repente, ela parou. Olhou para mim. Olhei para ela. Olhamo-nos durante algum tempo. E ela seguiu o seu rumo. Avançou com o marido. Ainda ouvi a sua voz. Estava diferente. Tenho a certeza que não me conheceu. Não senti nada. Nem um arrepio, nem um arrepio sequer, aquilo que sinto sempre em situações incómodas. Nada. Gostava de lhe ter dito «olá». Dizer-lhe quem sou e o que faço. Mas não me apeteceu. Agora, dias depois do sucedido, estou arrependido. Por que será?
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