Crónica de Um Caso Vulgar
Enquanto ela se matava, seus amigos mais íntimos dançavam na sua sala de visitas, ao som de música bem alta e ritmada, na maior das animações.
Pela quarta vez aquela cena estava a ser repetida.
- Espera um instante disse-lhe ela; deixa-me ir à sala ver se todos estão servidos de bebidas e se não falta gelo.
- Vai lá então, mas não demores que a orientação das luzes pode sofrer oscilações o que se notará nos efeitos da montagem final.
Voltando da sala, disse-lhe:
- Podemos continuar. Está tudo em ordem com os nossos amigos.
- Não te esqueças dos óculos e de reencher o copo de água só até pouco mais de metade…
Já deitada na cama, entre os lençóis, quarto com quase nenhuma luz e apenas a estritamente necessária, esticou o braço de fora e levou a mão à pêra do candeeiro que acendeu, num gesto meio estremunhado e impreciso, tacteando o tampo da mesa-de-cabeceira à procura dos óculos de grossos aros de massa negra.
Com brusquidão sentou-se na cama, invadida por enorme angústia. O mesmo pesadelo de sempre a fizera acordar!
A descomunal falésia rochosa, escarpada e árida, sem ninguém à vista e com o mar de violentas ondas, cuja espuma da rebentação alta e forte quase lhe salpicava os pés, conviadava-a a uma queda irresistível. Um belo plongée, este.
Jogou com força os lençóis para o fundo da cama, deixando a descoberto os pés, e olho-os vendo como tremiam no mesmo compasso das fortes dores causadas pelos esticões de músculos de pernas e pés, totalmente descontrolados.
Levando a mão à face, cobriu-a da expressão de pavor que imaginava espelhada no seu rosto, sem se atrever a vê-lo, e saltou da cama com brusquidão.
Na gaveta da cómoda no recanto da entrada do quarto, procurou o frasco dos sedativos e retirou apenas um que engoliu, quase a seco, só empurrado pela saliva. Dois passos à frente voltou-se novamente em direcção à cómoda e trouxe consigo, sem hesitação, bem apertado na mão direita, o mesmo frasco de comprimidos.
Já metida entre os lençóis, recostou as costas nas duas almofadas, pousando o frasco por um instante no colo, enquanto escolhia uma posição confortável para os seus últimos instantes de vida, e deixando descair um pouco sobre o nariz os óculos que sempre lhe magoaram a cana pelo seu excessivo peso, respirou fundo, muito fundo, após um leve arrepio que lhe percorreu todo o corpo, deixando-a num profundo estado de alívio e bem estar.
Torceu então o tronco e reclinou-se sobre a mesa-de-cabeceira, colocando a mão sob o círculo de luz formado pelo abat-jour redondo do candeeiro, espalhando todas as cápsulas que o frasco continha, no frio tampo de mármore de cor cinza, raiado a veios brancos. As cápsulas azuis e rosa tentavam resvalar para o chão. Travou-as com os dedos firmes, brincando com elas em desafio, num vaivém de suaves movimentos.
O seu derradeiro gesto, expressivo e carinhoso, feito pelos dedos da sua mão balançante, como asas de borboleta prestes a levantar voo.
Estava próximo o momento da mais profunda paz que jamais sentira e tanto aspirava, pressagiou Mariana.
Uma a uma, confiante mas lentamente, foi engolindo, cápsula, água, cápsula, água, cápsula, água, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula… … … …
Nem sei quantas terei tomado no total. Afinal já era a quarta vez que esta cena se repetia, e o gosto a plástico que me vinha à boca, nos dias seguintes ao acordar, era asqueroso.
Que sedutoras aquelas cápsulas de invólucro azul/rosa que continham o pó milagroso e fatídico. Só que, o seu recheio era sempre retirado na totalidade pelo seu extremoso assistente, que as preparava cuidadosamente de véspera, não deixando o mínimo vestígio de pó.
Que agradável e fresco cheiro a limão vem desta despensa onde fui buscar, num curto intervalo de mudança de planos e luzes, dois maços de cigarros, para levar aos meus amigos, à sala, onde os encontrei no maior dos entusiasmos e agitação, dançando, conversando e rindo em total abstracção.
O seu derradeiro gesto, expressivo e carinhoso, feito pelos dedos da sua mão balançante, como asas de borboleta prestes a levantar voo.
Estava próximo o momento da mais profunda paz que jamais sentira e tanto aspirava, pressagiou Mariana.
Uma a uma, confiante mas lentamente, foi engolindo, cápsula, água, cápsula, água, cápsula, água, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula… … … …
Nem sei quantas terei tomado no total. Afinal já era a quarta vez que esta cena se repetia, e o gosto a plástico que me vinha à boca, nos dias seguintes ao acordar, era asqueroso.
Que sedutoras aquelas cápsulas de invólucro azul/rosa que continham o pó milagroso e fatídico. Só que, o seu recheio era sempre retirado na totalidade pelo seu extremoso assistente, que as preparava cuidadosamente de véspera, não deixando o mínimo vestígio de pó.
Que agradável e fresco cheiro a limão vem desta despensa onde fui buscar, num curto intervalo de mudança de planos e luzes, dois maços de cigarros, para levar aos meus amigos, à sala, onde os encontrei no maior dos entusiasmos e agitação, dançando, conversando e rindo em total abstracção.
Não poderei nunca esquecer aquele momento. Eram abraços e beijos sem fim que todos me ofereciam perguntando: - Já está?
Meia desnuda pela transparência da sóbria mas lindíssima camisa de dormir, cor de carne, que me cobria os pés, de longas e finas alças de seda que escorregavam sobre os magros ombros, e usada expressamente para aquela cena, realçavam-se uns seios nus e firmes, num delicado e muito gracioso corpo de mulher bem madura.
Desculpem não poder demorar-me mais aqui, disse a meus amigos após entregar-lhes os dois maços de cigarros e verificar que nada lhes faltava. Vim só ver se estavam todos bem. O Paulo espera-me no quarto e não tarda começa a manifestar a sua impaciência pela minha demora que, com os seus habituais nervinhos nestas ocasiões e tão bem conhecidos por todos nós, o poderá levar a sair porta fora, deixando-me nesta linda figura de morta-viva, e acaba por não ser ainda desta vez que eu me, finalmente, me suicido.
CORTA!
(…)
Maria Oliveira
Meia desnuda pela transparência da sóbria mas lindíssima camisa de dormir, cor de carne, que me cobria os pés, de longas e finas alças de seda que escorregavam sobre os magros ombros, e usada expressamente para aquela cena, realçavam-se uns seios nus e firmes, num delicado e muito gracioso corpo de mulher bem madura.
Desculpem não poder demorar-me mais aqui, disse a meus amigos após entregar-lhes os dois maços de cigarros e verificar que nada lhes faltava. Vim só ver se estavam todos bem. O Paulo espera-me no quarto e não tarda começa a manifestar a sua impaciência pela minha demora que, com os seus habituais nervinhos nestas ocasiões e tão bem conhecidos por todos nós, o poderá levar a sair porta fora, deixando-me nesta linda figura de morta-viva, e acaba por não ser ainda desta vez que eu me, finalmente, me suicido.
CORTA!
(…)
Maria Oliveira
[Nota: A continuação desta estória, é muito particularmente dedicada à Katheline. Ela bem sabe do que falo...]
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