terça-feira, junho 20, 2006

Crónica de Um Caso Vulgar


Enquanto ela se matava, seus amigos mais íntimos dançavam na sua sala de visitas, ao som de música bem alta e ritmada, na maior das animações.

Pela quarta vez aquela cena estava a ser repetida.

- Espera um instante disse-lhe ela; deixa-me ir à sala ver se todos estão servidos de bebidas e se não falta gelo.
- Vai lá então, mas não demores que a orientação das luzes pode sofrer oscilações o que se notará nos efeitos da montagem final.
Voltando da sala, disse-lhe:
- Podemos continuar. Está tudo em ordem com os nossos amigos.
- Não te esqueças dos óculos e de reencher o copo de água só até pouco mais de metade…

Já deitada na cama, entre os lençóis, quarto com quase nenhuma luz e apenas a estritamente necessária, esticou o braço de fora e levou a mão à pêra do candeeiro que acendeu, num gesto meio estremunhado e impreciso, tacteando o tampo da mesa-de-cabeceira à procura dos óculos de grossos aros de massa negra.
Com brusquidão sentou-se na cama, invadida por enorme angústia. O mesmo pesadelo de sempre a fizera acordar!
A descomunal falésia rochosa, escarpada e árida, sem ninguém à vista e com o mar de violentas ondas, cuja espuma da rebentação alta e forte quase lhe salpicava os pés, conviadava-a a uma queda irresistível. Um belo plongée, este.
Jogou com força os lençóis para o fundo da cama, deixando a descoberto os pés, e olho-os vendo como tremiam no mesmo compasso das fortes dores causadas pelos esticões de músculos de pernas e pés, totalmente descontrolados.
Levando a mão à face, cobriu-a da expressão de pavor que imaginava espelhada no seu rosto, sem se atrever a vê-lo, e saltou da cama com brusquidão.

Na gaveta da cómoda no recanto da entrada do quarto, procurou o frasco dos sedativos e retirou apenas um que engoliu, quase a seco, só empurrado pela saliva. Dois passos à frente voltou-se novamente em direcção à cómoda e trouxe consigo, sem hesitação, bem apertado na mão direita, o mesmo frasco de comprimidos.

Já metida entre os lençóis, recostou as costas nas duas almofadas, pousando o frasco por um instante no colo, enquanto escolhia uma posição confortável para os seus últimos instantes de vida, e deixando descair um pouco sobre o nariz os óculos que sempre lhe magoaram a cana pelo seu excessivo peso, respirou fundo, muito fundo, após um leve arrepio que lhe percorreu todo o corpo, deixando-a num profundo estado de alívio e bem estar.
Torceu então o tronco e reclinou-se sobre a mesa-de-cabeceira, colocando a mão sob o círculo de luz formado pelo abat-jour redondo do candeeiro, espalhando todas as cápsulas que o frasco continha, no frio tampo de mármore de cor cinza, raiado a veios brancos. As cápsulas azuis e rosa tentavam resvalar para o chão. Travou-as com os dedos firmes, brincando com elas em desafio, num vaivém de suaves movimentos.
O seu derradeiro gesto, expressivo e carinhoso, feito pelos dedos da sua mão balançante, como asas de borboleta prestes a levantar voo.
Estava próximo o momento da mais profunda paz que jamais sentira e tanto aspirava, pressagiou Mariana.
Uma a uma, confiante mas lentamente, foi engolindo, cápsula, água, cápsula, água, cápsula, água, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula, cápsula… … … …


Nem sei quantas terei tomado no total. Afinal já era a quarta vez que esta cena se repetia, e o gosto a plástico que me vinha à boca, nos dias seguintes ao acordar, era asqueroso.
Que sedutoras aquelas cápsulas de invólucro azul/rosa que continham o pó milagroso e fatídico.
Só que, o seu recheio era sempre retirado na totalidade pelo seu extremoso assistente, que as preparava cuidadosamente de véspera, não deixando o mínimo vestígio de pó.

Que agradável e fresco cheiro a limão vem desta despensa onde fui buscar, num curto intervalo de mudança de planos e luzes, dois maços de cigarros, para levar aos meus amigos, à sala, onde os encontrei no maior dos entusiasmos e agitação, dançando, conversando e rindo em total abstracção.
Não poderei nunca esquecer aquele momento. Eram abraços e beijos sem fim que todos me ofereciam perguntando: - Já está?

Meia desnuda pela transparência da sóbria mas lindíssima camisa de dormir, cor de carne, que me cobria os pés, de longas e finas alças de seda que escorregavam sobre os magros ombros, e usada expressamente para aquela cena, realçavam-se uns seios nus e firmes, num delicado e muito gracioso corpo de mulher bem madura.

Desculpem não poder demorar-me mais aqui, disse a meus amigos após entregar-lhes os dois maços de cigarros e verificar que nada lhes faltava. Vim só ver se estavam todos bem. O Paulo espera-me no quarto e não tarda começa a manifestar a sua impaciência pela minha demora que, com os seus habituais nervinhos nestas ocasiões e tão bem conhecidos por todos nós, o poderá levar a sair porta fora, deixando-me nesta linda figura de morta-viva, e acaba por não ser ainda desta vez que eu me, finalmente, me suicido.

CORTA!

(…)

Maria Oliveira

[Nota: A continuação desta estória, é muito particularmente dedicada à Katheline. Ela bem sabe do que falo...]



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