segunda-feira, dezembro 22, 2003

Outono: Ao longo destes três meses, escreveram-se palavras em homenagem a um palavra, a um estado de espírito, a uma época do ano: o Outono. Palavras que se encadearam, o reflexo da alma, palavras disto e daquilo. Palavras alusivas a uma estação tão marcante. Está a chegar ao fim, porque tudo chega ao fim. Os textos e as palavras também chegam ao fim. O Inverno está ao virar da esquina, mas vale a pena olhar para trás e reler o que ficou. Cinco textos, cinco momentos. Sobre o Outono. De mim para todos:

Outono, 1: As árvores pingam folhas amarelas em direcção da pedra cinzenta e pressente-se uma aragem gelada mal a noite cai. No ar, o pó seco é o respiro da natureza: assiste-se a um misto de fogo pálido e de castanho suave a entrelaçar-se no passeio até os nossos olhos se perderem um no outro. O vento empurra as folhas secas para a berma da estrada e ouvem-se todos aqueles movimentos como se o céu e a terra parassem por segundos e tudo se resumisse àquele som, por vezes quente, outras vezes frio, tal e qual a tua voz a escorrer nos meus ouvidos. Assim, bailamos. Como as fotografias antigas nos conduzem a danças lentas em bosques escuros.

........................................

Outono, 2: Estar em casa, sem nada para fazer, olhar lá para fora e ver a chuva a colar-se ao vidro da janela como lápis inquietos em folhas de papel. Ter frio, pegar num cobertor, saber que aquela tarde é tão vazia como todas as outras, porque o vento dobra a esquina, porque o céu cobre-se de negro, porque o telefone continua em silêncio, porque as tuas palavras não chegam, porque a rádio repete os noticiários a todas as horas. Olhar de novo lá para fora e ver que o fim do dia traz com ele o caos que só a noite conhece: os carros em fila indiana ao longo da avenida, os faróis ligados, a chuva a pingar bem lá do alto. Ter frio. Um cigarro. As tuas palavras não chegam...

........................................

Outono, 3: Há um caminho que nos leva para o outro lado da montanha, onde tudo começa da mesma maneira: há uma fotografia, uma música, uma palavra, uma folha amarela e um vento cortante. Estamos sentados na nossa cadeira, acreditamos em tudo, até nas nossas vozes, recordamos abraços, penetramos o silêncio nas nossas mãos até vasculhar as gavetas do quarto. «És tu», dizemos as vezes que forem precisas. És tu, és tu. Serás sempre tu e mais ninguém.

........................................

Outono, 4: O vendedor de castanhas, ao fundo da avenida, é sempre o mesmo: tem a cara suja de cinzas, usa um chapéu preto e tem uma mão funda como se tivesse vivido no campo a semear de sol a sol, a desbravar a terra com aquelas mãos já calejadas e sofridas. O fumo perde-se por entre a cidade e o abanador de palha é como o mundo. Anda de um lado para o outro, nunca pára, está em constante rodopio naquela rua carregada de bustos e de olhares. Sente-se no ar um cheiro a castanha assada, um odor quente ao final de tarde, como se fosse um som de uma música suave a bailar nos nossos ouvidos. O trânsito evaporou-se, o ruído de fundo desapareceu. Não há vozes. Só um cheiro a chuva, a frio e a saudade.

........................................

Outono, 5: Hoje já não sei mais nada. Quando foste embora sem dizer uma única palavra. O calendário diz que ainda estamos no Outono, mas desconfio. De ti e de todas as vozes que me chegam. Cada dia que passa, cada hora que avança como se fosse a primeira hora de todas as horas, belisca-me um frio húmido vindo das entranhas do mar. O sol apaga-se por entre a linha do horizonte e só me apetece continuar aqui, sozinho, de livro na mão, a mergulhar naquelas tardes de Verão em que partilhávamos segredos dentro daquele quarto. Está frio. Todos os dias, invade-me a mesma dúvida: O que hei-de vestir? Vou levar guarda-chuva? A gabardina fica dentro do armário? Continuo aqui, a ler. Não há palavras para mais nada...

  • |
  • a href="http://www.haloscan.com/">Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com