sábado, dezembro 06, 2003

«Só falei do tempo que passa»

«Que horas eram? Pessoa não sabia. Seria noite? O dia se teria levantado? A enfermeira veio e deu-lhe outra injecção. Pessoa já não sentia a dor do lado direito. Estava agora numa paz estranha, como se um nevoeiro tivesse descido sobre ele.
Os outros, pensou, agora viriam os outros. É claro que queria despedir-se de todos antes de partir. Mas havia um encontro que o angustiava, era o encontro com o Mestre Caeiro. Porque Caeiro vinha do Ribatejo e tinha uma saúde tão frágil. Como viria ele a Lisboa, talvez de caleche? É verdade que Caeiro já tinha morrido, mas estava ainda vivo, viveria eternamente naquela casinha branca de cal do Ribatejo de onde olhava com um olhar implacável a passagem das estações, a chuva invernal e a canícula do verão.
Ouviu bater à porta e disse: Entre.
Alberto Caeiro trazia um casaco de veludo com uma gola de pêlo. Era um homem do campo, via-se pela maneira de vestir.
Ave, Mestre, disse Pessoa, morituri te salutant.
Caeiro aproximou-se dos pés da cama e cruzou os braços. Meu caro Pessoa, disse, vim dizer-lhe uma coisa, permite-me que lhe faça uma confissão?
Faça favor, replicou Pessoa.
Pois bem, disse Caeiro, …»

(Antonio Tabucchi, in Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa)

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