quarta-feira, junho 30, 2004

Talvez

Talvez até a Vida seja simples
Os meus lábios são por exemplo
Feitos de vento
E a minha voz é uma cortina de fumo
Para me defender do frio

Lembrei-me um dia
De cortar os dedos
Para não mais escrever poesia.
(Nunca chorei tanto
em toda a minha Vida!…)
Hoje tenho a convicção das dunas.
E sei que os meus cabelos
Escrevem 365 livros por ano
E
Procuro sozinha o Infinito.


Maria Azenha
(Portugal)

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  • terça-feira, junho 29, 2004

    Noite de mendigo

    Fui seqüestrada nas entranhas
    desta noite
    por uma espécie de Senhor
    da madrugada
    Era meu corpo a implorar
    por um abrigo
    tal qual imensa ilha
    desgarrada

    Ele insistia em relembrar mistérios
    entumecia agredia
    (desterrava)
    E evocava um outro tipo
    de tremor
    Algo que fosse o avesso
    (uma morada)

    Amanhecia
    e as plantas já secavam
    daquelas gotas tão iguais às
    do meu corpo
    E a viagem (ante o sol)
    se transformava
    em mais algum delírio que
    desponta
    de uma louca (e tão mendiga)
    madrugada


    Eliana Mora
    (Brasil)

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  • segunda-feira, junho 28, 2004

    As palavras

    São como um cristal,
    as palavras.
    Algumas, um punhal,
    um incêndio.
    Outras,
    orvalho apenas.

    Secretas vêm, cheias de memória.
    Inseguras navegam:
    barcos ou beijos,
    as águas estremecem.

    Desamparadas, inocentes,
    leves.
    Tecidas são de luz
    e são a noite.
    E mesmo pálidas
    verdes paraísos lembram ainda.

    Quem as escuta? Quem
    as recolhe, assim,
    cruéis, desfeitas,
    nas suas conchas puras?


    Eugénio de Andrade

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  • domingo, junho 27, 2004

    Queixa das almas jovens censuradas

    Dão-nos um lírio e um canivete
    e uma alma para ir à escola
    mais um letreiro que promete
    raízes, hastes e corola

    Dão-nos um mapa imaginário
    que tem a forma de uma cidade
    mais um relógio e um calendário
    onde não vem a nossa idade

    Dão-nos a honra de manequim
    para dar corda à nossa ausência.
    Dão-nos um prêmio de ser assim
    sem pecado e sem inocência

    Dão-nos um barco e um chapéu
    para tirarmos o retrato
    Dão-nos bilhetes para o céu
    levado à cena num teatro

    Penteiam-nos os crânios ermos
    com as cabeleiras das avós
    para jamais nos parecermos
    conosco quando estamos sós

    Dão-nos um bolo que é a história
    da nossa historia sem enredo
    e não nos soa na memória
    outra palavra que o medo

    Temos fantasmas tão educados
    que adormecemos no seu ombro
    somos vazios despovoados
    de personagens de assombro

    Dão-nos a capa do evangelho
    e um pacote de tabaco
    dão-nos um pente e um espelho
    pra pentearmos um macaco

    Dão-nos um cravo preso à cabeça
    e uma cabeça presa à cintura
    para que o corpo não pareça
    a forma da alma que o procura

    Dão-nos um esquife feito de ferro
    com embutidos de diamante
    para organizar já o enterro
    do nosso corpo mais adiante

    Dão-nos um nome e um jornal
    um avião e um violino
    mas não nos dão o animal
    que espeta os cornos no destino

    Dão-nos marujos de papelão
    com carimbo no passaporte
    por isso a nossa dimensão
    não é a vida, nem é a morte


    Natália Correia

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  • sexta-feira, junho 25, 2004

    Selecção

    Às vezes não sei por que sofremos tanto quando vemos um jogo de futebol. Neste caso, não sei por que o coração salta e a pulsação aumenta com os jogos da selecção nacional. Ontem, ao ver o Portugal-Inglaterra, dei por mim a pensar nesta estranha força, superior a qualquer um de nós. O que está em causa? Será o orgulho nacional? Será isso que nos leva a sofrer com um simples jogo de futebol como se estivesse em causa a vitória das nossas vidas?

    Pouco importa. Parabéns Portugal.

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  • Comentários

    O livro de reclamações do blog recebeu algumas críticas positivas dos nossos estimados leitores. O sistema antigo de comentários não ia ao encontro das exigências, a Maria recebeu os recados e passou a bola para o lado de cá. Como sempre, fiz aquilo que pude. Temos uma nova caixa de comentários e espero que funcione em pleno. Nestas coisas não se pode hesitar um segundo. Clientes, toca a bombar comentários. A gerência agradece.

    PS: Ó Chefe (até parece que estou a dizer «Óóóóóó Maria), será que está bem assim?

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  • quinta-feira, junho 24, 2004

    Desejo

    Diante de mim
    o seu corpo
    belo
    firme
    quase nu
    com cheiro
    de mar
    e de amor.
    Diante dele
    o meu querer
    o meu desejo
    intenso
    inteiro
    integral
    indescritível
    de tocar
    cheirar
    sentir
    aquele corpo
    aquele homem
    aquele amigo
    desejo.


    Stela Fonseca

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  • quarta-feira, junho 23, 2004

    Fragmentos

    Muros castos e tristes
    Cativos de si mesmos

    Como criaturas que envelhecem
    Sem conhecer a boca
    De homens e mulheres.

    Muros Escuros, tímidos:
    Escorpiões de seda
    No acanhado da pedra.

    Há alturas soberbas
    Danosas, se tocadas.
    Como a tua própria boca, amor,
    Quando me toca...


    Hilda Hilst

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  • terça-feira, junho 22, 2004

    Afrodite

    Formosa.
    Esses peitos pequenos, cheios.
    Esse ventre, o seu redondo espraiado!
    O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
    das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
    as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
    o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
    cariciosa do ombro...
    Afrodite, não chorei quando te descobri?
    Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
    e de Roma!
    Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
    frontes tranquilas, abstractas...
    Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
    Era uma assembleia de amáveis espíritos, divagadores,
    ente si trocando serenas, eternas e nunca
    desprezadas razões formais.
    Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
    O descanso desse teu gesto!
    A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
    A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
    E um fumo, uma impressão tão subtil e tão
    provocante de pudor, de volúpia, de
    reserva, de abandono...
    Já passaram sobre ti dois mil anos?
    Estranha obra de um homem!
    Que doçura espalhas e que grandeza...
    És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
    Não és mística, não exacerbas, não angústias.
    Geras o sonho do amor.
    Praxíteles.
    Como pudeste criar Afrodite?
    E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
    a vencer, gozar!
    Tinha de assim ser.
    Eternizaste-a!
    A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...


    Irene Lisboa

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  • domingo, junho 20, 2004

    PORTUGAL

    Assim, sim. Dá gosto ver a selecção. Obrigado, Portugal.

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  • Dia de futebol

    Em dias de futebol, especialmente quando os jogos são decisivos, como é o caso deste Portugal-Espanha, os telejornais são pouco aconselháveis para gente interessada em saber o que se passa no Mundo. Começam e terminam da mesma maneira, com os repórteres a fazer directos de coisa nenhuma, a entrevistar adeptos que se limitam ao óbvio e as respostas banais, que vão ao encontro de perguntas desinteressantes.

    Portugal é dos poucos países onde o futebol tem direito a honras principescas, ou seja, abre os telejornais como se fosse um acontecimento determinante. É o reflexo do povo, das vontades, das ideias expressas numa massa humana pouco evoluída e que se deixa dominar pelas emoções fáceis.

    PS: Não quero com isto dizer que detesto futebol, bem pelo contrário. É dos espectáculos mais fascinantes à face da Terra, mas quando se cai no exagero chega-se a este estado de pobreza ridícula. Simplesmente, lamentável.

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  • sábado, junho 19, 2004

    Sou de vidro

    Meus amigos sou de vidro
    Sou de vidro escurecido
    Encubro a luz que me habita
    Não por ser feia ou bonita
    Mas por ter assim nascido
    Sou de vidro escurecido
    Mas por ter assim nascido
    Não me atinjam não me toquem
    Meus amigos sou de vidro

    Sou de vidro escurecido
    Tenho fumo por vestido
    E um cinto de escuridão
    Mas trago a transparência
    Envolvida no que digo
    Meus amigos sou de vidro
    Por isso não me maltratem
    Não me quebrem não me partam
    Sou de vidro escurecido

    Tenho fumo por vestido
    Mas por assim ter nascido
    Não por ser feia ou bonita
    Envolvida no que digo
    Encubro a luz que me habita

    Lídia Jorge

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  • Parolos

    Os ingleses voltam a dar o exemplo daquilo que são. Em Coimbra lançaram o pânico, beberam cerveja até caírem de bêbados, meteram-se com as pessoas e fizeram cara feia às autoridades. A violência voltou a ser uma palavra grave quando o desporto aconselha ao convívio entre todos. Dá que pensar. Porque nós, portugueses, é que somos vistos como uns parolos, que não nos sabemos comportar quando vamos ao estrangeiro. Por aquilo que se passou em Coimbra, ainda damos cursos de boas maneiras. Ou não é?

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  • quinta-feira, junho 17, 2004

    Poesia Latina

    Os mensageiros negros

    Há golpes na vida, tão fortes... eu não sei!
    Golpes como o ódio de Deus; como se ante eles,
    a ressaca de todo o sofrido
    se estagna na alma... eu não sei!

    São poucos; mas são... abrem poças escuras
    no rosto mais feio e no lombo mais forte,
    serão talvez os potros de bárbaros atilas;
    os mensageiros negros que nos manda a morte.

    São as quedas fundas dos cristos da alma,
    de alguma fé adorável que o destino blasfema.
    Esses golpes sanguinolentos são as crepitações
    de algum pão que na porta do forno nos queima.

    E o homem... pobre....pobre! Volta os olhos, como
    quando por sobre o ombro nos chama uma palmada;
    Volta os olhos loucos, todo o vivido
    estagna-se, como charco de culpa, no olhar.

    Há golpes na vida, tão fortes... eu não sei!


    Cesar Vellejo
    (Peru, 1899-1936)

    [Tradução Héctor Zanetti]

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  • Poesia Latina

    A flor do ar

    Eu a encontrei por meu destino,
    de pé a metade da pradaria,
    governadora do que passe,
    do que lhe fale e que a veja.

    E ela me disse: "Sobe ao monte".
    Eu nunca deixo a pradaria,
    e me cortas as flores brancas
    como neves, duras e delicadas".

    Subi à acida montanha,
    busquei as flores onde alvejam,
    entre as rochas existindo
    meio dormidas e despertas.

    Quando desci com minha carga,
    a encontrei a metade da pradaria.
    e fui cubrindo-a frenética
    com uma torrente de açucenas

    e sem olhar-se a brancura,
    ela me disse: "Tu carregas
    agora só flores vermelhas.
    Eu não posso passar a pradaria".

    Subi as penas com o veado
    e busquei flores de demência,
    as que avermelham e parecem
    que de vermelho vivam e morram


    Gabriela Mistral
    (Chile, 1889-1957)

    [Tradução Maria Teresa Almeida Pina]

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  • quarta-feira, junho 16, 2004

    Poesia Latina

    E que venha a noite...

    Presenteia-me o riso de teus olhos
    a tênue luz de teu sorriso
    o milagre de teu nome
    em minha boca.

    Presenteia-me a umidade de teus beijos
    o tíbio manto de teu abraço
    o mar embravecido de teu corpo
    junto ao meu.

    Presenteia-me o amanhecer de tuas paixões
    o espelho frágil de tuas chuvas
    tua inocência feita mulher
    com minhas carícias.

    Presenteia-me teu amor
    amor
    e que venha a noite...


    Carlos Enrique Ungo
    (El Salvador - 1963)

    [Tradução Maria Teresa Almeida Pina]

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  • terça-feira, junho 15, 2004

    Poesia Latina

    Palavras a um habitante de Marte

    Será verdade que existes sobre o vermelho planeta,
    que, como eu, possuis finas mãos prêensíveis,
    boca para o riso, coração de poeta,
    e uma alma administrada pelos nervos sutis?

    Mas no teu mundo, acaso, se erguem as cidades
    como sepulcros tristes? As assolou a espada?
    Já tudo tem sido dito? Com o teu planeta acrescentas
    a vasta harmonia outra taça vazia?

    Se fores como um terrestre, que poderia importar-me
    que o teu sinal de vida desça a visitar-me?
    Busco uma estirpe nova através da altura.

    Corpos bonitos, donos do segredo celeste
    da alegria achada. Mas se o teu não é este,
    se tudo se repete, cala triste criatura!


    Alfonsina Storni
    [Tradução Héctor Zanetti]

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  • segunda-feira, junho 14, 2004

    Eleições

    Fala-se muito na esmagadora vitória do PS ou na derrapagem completa da coligação «Força Portugal» nas eleições ao Parlamento Europeu, mas há um dado sobre o qual convém reflectir e funciona como o exemplo perfeito do descontentamento político. Quem ganhou estas eleições foi a abstenção. Com 61,25 por cento. É preciso dizê-lo.

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  • domingo, junho 13, 2004

    Vá lá...

    Perdemos o primeiro jogo no Euro-2004, mas o patriotismo permaneceu intacto: as bandeiras mantêm-se nas janelas um pouco por todo o país. Vá lá, como diria a Maria Oliveira, «salvou-se a pátria...»

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  • Maria Bonita

    Esta noite em Angico
    a brisa é calma.
    No silêncio farfalham
    Minhas anáguas
    Como farfalham asas
    E no escuro minha carne
    Cheira a mato.

    Vem meu amor e lavra
    Este roçado
    Como quem quebra
    Um cântaro,
    Como que lava
    A casa;
    Águas frescas na tarde.

    Tuas límpias carícias,
    Teus dedos como pássaros
    E teu corpo que arde
    Como estrelas
    No espaço.

    Não quero tua candeia,
    Só meus sonhos acesos
    E eu te direi de nácar
    Terciopelo,
    Coisas antigas, pelo de
    Leoa; voz de cego na feira,

    Não quero teu braseiro,
    Tua intensa
    Cintilação que queima
    Meus vestidos

    Só quero a tua volta,
    Tua presença
    Iluminando a noite
    Que me cerca
    Como uma luz acesa
    No postigo.

    Que sabes de minha vida
    Além da morte
    Inquieta que me ronda?
    Que sabe desta chita
    Destes panos
    Que envolvem minha nudez
    Como uma chama?

    São teu olhos
    Carvões que me devoram,
    São teus beijos
    Fosforescências de mel,
    Travo forte das frutas.

    Teus dedos como setas
    Apontam meu destino:
    Meu caminho,
    Na planta de teus pés;
    Meu horizonte,
    No risco de tuas mãos
    E meus cabelos
    Esparsos sobre a relva
    Em que me habitas.

    Sou teu medo, teu sangue,
    Sou teu sono,
    Tua alpercata
    De couro,
    Teu olho cego, miragem
    Dos vidros
    Com que miras
    A mira do mosquete.

    Sou teu sabre,
    Facão com que degolas.
    Sou o gosto de sal,
    Veneno que espalharam
    No prato.
    Sou a colher de prata
    Azinhavrada. Sou teu laço

    Teu lenço
    No pescoço.
    Sou teu chapéu de couro
    Constelado
    Com estrelas de prata
    Sua a ponta
    Do teu punhal buscando
    O peito dos macacos.
    Sou teu braço,
    A cartucheira cruzada
    Sobre o peito,
    Sou teu leito
    De angico e alecrim

    Sou a almofada
    Em que deitas a face,
    O cheiro agreste
    Dos homens que mataste.
    sou a bainha
    E a lâmina é meu resgate.

    Sou tua fera. Sussuarana
    No escuro - bote e salto.
    Jaguatirica acesa nestes altos
    Mundéus de teu alarme. Sou o parto
    Da morte que te espreita.

    Sou teu guia
    Tua estrela, teu rastro, tua corja.
    Sou tua mãe que chora,
    Sou tua filha. Teu cachorro fiel,
    Tua égua parida.
    Sou a roseta na carne,
    O lombo nas esporas.

    Sou montaria e cavalo,
    Fúria e faca.
    Ferro em brasa na espádua
    Sou teu gado,
    Tua mulher, tua terra,
    Tua alma,
    Tua roça. Coivara
    Que incendeias e apagas,
    Tua casa.

    Areia no sapato.
    Sou a rede
    Aberta como um fruto,
    Sou soluço. Fome escura
    De poço. Sou a caça
    Abatida. Lebre e gato,
    Coisas quentes ao tato.

    Vem, meu dono, meu sócio,
    Meu comparsa.
    Desarma o teu cansaço,
    Desata a cartrucheira,
    A noite é farta
    Como besta no cio,

    A noite é vasta.
    Vem, devagar
    E habita meu silêncio
    Como se habita
    Um claustro.

    Lâminas. Como espadas.
    Pasto de aves meu corpo
    Que trabalhas
    Como quem corta e lavra.

    Desata a cartucheira,
    Teu campo de batalha
    Sou eu.
    Por um momento
    Esquece o que te mata
    - fúria e falta -
    E enquanto a noite é calma
    Vem e apaga
    Na pele do meu peito
    Esta fome sem data.


    Myrian Fraga

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  • sexta-feira, junho 11, 2004

    Teste ao patriotismo

    Já aqui se escreveu sobre as bandeiras portuguesas presas nas varandas e colocadas nos vidros das janelas, na esperança de que o Euro-2004 seja a vitória triunfal que tanto desejamos. É uma atitude de grande patriotismo, é facto. Mas uma reflexão mais atenta ao fenómeno, que corre o país de Norte a Sul, num gesto de nobreza e de grande sentimento lusitano, leva-me a este ponto: vamos ver se à primeira derrota as bandeiras não desaparecem das ruas, numa simples acção de mau perder. Agora é que vamos conhecer os verdadeiros patriotas.

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  • quinta-feira, junho 10, 2004

    [citare]

    "Todos precisam de recordações.
    Elas afastam o horror da insignificância."



    (Saul Bellow) escritor e novelista norte-americano. Nasceu em 10 de junho de 1915, Lachine, Québec, tipo humano Gêmeos, signo Ar, regência Mercúrio, pedra Ágata e flor Flor-de-maracujá. Com 89 anos e 1 dia de idade. Agraciado com o Prêmio Nobel 1976.

    De sua extensa obra narrativa sobre a condição dos judeus destacam-se As aventuras de Augie March, 1953, Carpe Diem, 1956, O rei da chuva, 1959, Herzog, 1964, O legado de Humboldt, 1975 e São mais os que morrem de desamor, 1987. Em 1994 publicou uma coleção de ensaios intitulada Soma e segue.

    [Carpe Diem! - Charles Evaldo Boller - Brasil]

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  • ARRE, que tanto é muito pouco!

    ARRE, que tanto é muito pouco!
    Arre, que tanta besta é muito pouca gente!
    Arre, que o Portugal que se vê é só isto!
    Deixem ver o Portugal que não deixam ver!
    Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!
    Ponto.

    Agora começa o Manifesto:
    Arre!
    Arre!
    Oiçam bem:
    ARRRRRE!

    Álvaro de Campos (1890-?)

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  • quarta-feira, junho 09, 2004

    Patriotismo

    Um fenómeno curioso invade algumas ruas da cidade do Porto e dá um toque colorido ao burgo. O povo expressa o seu patriotismo da forma mais nobre possível: bandeiras portuguesas foram colocadas nas varandas, nas janelas, nota-se um certo respirar português, um sentimento próprio, de orgulho e de vaidade em sermos aquilo que somos. É anormal. Por norma, repudiámos e criticámos tudo o que aqui se diz, tudo o que aqui se faz. Infelizmente, este patriotismo súbito tem a explicação óbvia do futebol. A bola a saltar, o Euro-2004 à porta e o desejo ardente em sermos campeões da Europa. É uma pena que seja assim.

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  • terça-feira, junho 08, 2004

    Ponto de orvalho

    Nem se chega a saber como
    um inusitado sorriso,
    um volver de olhos doentes,
    um caminhar indeciso
    e cego por entre as gentes,
    chamam a si, aglutinam,
    essa dor que anda suspensa
    (e é dor de toda a maneira)
    como o vapor se condensa
    sobre núcleos de poeira.
    É essa angústia latente
    boiando no ar parado
    como um trovão iminente,
    que em muda voz se pressente
    num simples olhar trocado.
    Essa angústia universal,
    esse humano desespero,
    revela-se num sinal,
    numa ferida natural
    que rói com lento exagero.
    Não deita sangue nem pus,
    não se mede nem se pesa,
    não diz, não chora, não reza,
    não se explica nem traduz.
    A gente chega, respira,
    olha, sorri, cumprimenta,
    fala do frio que apoquenta
    ou do suor que transpira,
    e pronto, sem saber como,
    inútil, seco, vazio,
    cai na penumbra do rio,
    emerge, bóia, soçobra,
    fácil e desinteressado
    como um papel que se dobra
    por onde já foi dobrado.


    António Gedeão

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  • segunda-feira, junho 07, 2004

    Esta Velha

    Esta velha angústia,
    Esta angústia que trago há séculos em mim,
    Transbordou da vasilha,
    Em lágrimas, em grandes imaginações,
    Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
    Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
    Transbordou.
    Mal sei como conduzir-me na vida
    Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
    Se ao menos endoidecesse deveras!
    Mas não: é este estar entre,
    Este quase,
    Este poder ser que...,
    Isto.

    Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
    Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
    Estou doido a frio,
    Estou lúcido e louco,
    Estou alheio a tudo e igual a todos:
    Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
    Porque não são sonhos.
    Estou assim...

    Pobre velha casa da minha infância perdida!
    Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
    Que é do teu menino? Está maluco.
    Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
    Está maluco.
    Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

    Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
    Por exemplo, por aquele manipanso
    Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
    Era feiíssimo, era grotesco,
    Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
    Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
    Júpiter, Jeová, a Humanidade —
    Qualquer serviria,
    Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

    Estala, coração de vidro pintado!


    Álvaro de Campos

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  • domingo, junho 06, 2004

    Sessenta anos depois

    Hoje é um dia para a história. Faz 60 anos que a 2.ª Guerra Mundial passou a ter os dias contados, quando as tropas aliadas invadiram o território francês através das calmas praias da Normandia. É um dos maiores acontecimentos - e também uma das maiores chacinas - da história da humanidade: num só dia morreram milhares de soldados com o objectivo de libertar a Europa do pesadelo nazi.

    Seis décadas depois, as críticas aos americanos inundam o panorama da política internacional. A estratégia de força de Bush deixou as suas marcas no Médio Oriente, onde o conflito no Iraque é o exemplo perfeito de uma tendência dominadora, arrogante e violenta em relação a uma invasão que começou pela ideia de que as armas de destruição maciça (onde estavam elas?) eram um perigo para a humanidade.

    Mas uma coisa é certa: se não fossem os americanos, a 2.ª Guerra Mundial teria durado bem mais tempo do que o previsto - na pior das hipóteses, estaríamos sob o domínio alemão. Se não fossem os soldados americanos, o famoso dia D nunca teria existido. Hoje, 6 de Junho de 2004, seria uma data banal. É preciso reconhecê-lo.

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  • sábado, junho 05, 2004

    Reconhecimento à Loucucura

    Já alguém sentiu a loucura
    vestir de repente o nosso corpo?
    Já.
    E tomar a forma dos objectos?
    Sim.
    E acender relâmpagos no pensamento?
    Também.
    E às vezes parecer ser o fim?
    Exactamente.
    Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
    Tal e qual.
    E depois mostrar-nos o que há-de vir
    muito melhor do que está?
    E dar-nos a cheirar uma cor
    que nos faz seguir viagem
    sem paragem
    nem resignação?
    E sentirmo-nos empurrados pelos rins
    na aula de descer abismos
    e fazer dos abismos descidas de recreio
    e covas de encher novidade?
    E de uns fazer gigantes
    e de outros alienados?
    E fazer frente ao impossível
    atrevidamente
    e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
    a ponto do impossível ficar possível?
    E quando tudo parece perfeito
    poder-se ir ainda mais além?
    E isto de desencantar vidas
    aos que julgam que a vida é só uma?
    E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

    Tu Só, loucura, és capaz de transformar
    o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos
    [individuais
    Só tu és capaz de fazer que tenham razão
    tantas razões que hão-de viver juntas.
    Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
    Só tu tens asas para dar
    a quem tas vier buscar


    José de Almada Negreiros

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  • sexta-feira, junho 04, 2004

    ODE À INCOMPREENSÃO

    De todas estas palavras não ficará, bem sei,
    um eco para depois da morte
    que as disse vagarosamente pela minha boca.
    Tudo quanto sonhei, quanto pensei, sofri,
    ou nem sonhei ou nem pensei
    ou apenas sofri de não ter sofrido tanto
    como aterradamente esperava –
    nenhum eco haverá de outras canções
    não ditas, guardadas nos corações
    alheios, ecoando abscônditas ao sopro do poeta.

    Não por mim. Por tudo o que, para ecoar-se,
    não encontrou eco. Por tudo o que,
    para ecoar, ficou silencioso, imóvel –
    -- isso me dói como de ausência a música
    não tocada, não ouvida, o ritmo suspenso,
    eminente, destinado, isso me dói
    dolorosamente, amargamente, na distância
    do saber tão claro, da visão tão lúcida,
    que para longe afasta o compassado ardor
    das vibrações do sangue pelos corpos próximos.

    Tão longe, meu amor, te quis da minha imperfeição,
    da minha crueldade, desta miséria de ser por intervalos
    a imensa altura para que me arrebatas
    -- meu palpitar de imagem à beira da alegria,
    meu reflexo nas águas tranquilas da liberdade imaginada --,
    tão longe, que já não meus erros regressassem
    como verdade envenenando o dia a dia alheio.
    Tão longe, meu amor, tão longe,
    quem de tão longe alguma vez regressa?!

    E quem, ó minha imagem, foi contigo?

    (De mim a ti, de ti a mim,
    quem de tão longe alguma vez regressa?)


    Jorge de Sena
    4/10/49

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  • quinta-feira, junho 03, 2004

    Estratégias perigosas

    O preço da gasolina continua a disparar em flecha e algumas empresas do ramo petrolífero aproveitam-se da situação para tentar ludibriar os consumidores. Há estratégias perigosas nas nossas estradas como prova o exemplo que a seguir relato: certas gasolineiras não colocam em sítio visível, como mandam as regras, a tabela de preços. Objectivo óbvio. Muitos automobilistas são apanhados nesta teia e caem que nem patinhos por causa da necessidade extrema de terem de encher o depósito. Fica o alerta.

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  • quarta-feira, junho 02, 2004

    Provérbio Chinês

    Os nossos desejos são como crianças pequenas: quanto mais lhes cedemos, mais exigentes se tornam.

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  • Asa no espaço

    Asa no espaço, vai, pensamento!
    Na noite azul, minha alma flutua!
    Quero voar nos braços do vento,
    Quero vogar nos braços da Lua!

    Vai, minha alma, branco veleiro,
    vai sem destino, a bússola tonta...
    Por oceanos de nevoeiro
    corre o impossível, de ponta a ponta.

    Quebra a gaiola, pássaro louco!
    Não mais fronteiras, foge de mim,
    que a terra é curta, que o mar é pouco,
    que tudo é perto, princípio e fim.

    Castelos fluídos, jardins de espuma,
    ilhas de gelo, névoas, cristais,
    palácios de ondas, terras de bruma,
    ... Asa, mais alto, mais alto, mais!

    Fernanda de Castro

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  • terça-feira, junho 01, 2004

    A carícia perdida

    Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
    Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
    A carícia que vaga sem destino nem fim,
    A carícia perdida, quem a recolherá?
    Posso amar esta noite com piedade infinita,
    Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
    Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
    A carícia perdida, andará... andará...
    Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
    Se estremece os ramos um doce suspirar,
    Se te aperta os dedos uma mão pequena
    Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
    Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
    Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
    Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
    No vento fundida, me reconhecerás?


    Alfonsina Storni
    [Tradução de Carlos Seabra]

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