Talvez
Talvez até a Vida seja simples
Os meus lábios são por exemplo
Feitos de vento
E a minha voz é uma cortina de fumo
Para me defender do frio
Lembrei-me um dia
De cortar os dedos
Para não mais escrever poesia.
(Nunca chorei tanto
em toda a minha Vida!…)
Hoje tenho a convicção das dunas.
E sei que os meus cabelos
Escrevem 365 livros por ano
E
Procuro sozinha o Infinito.
Maria Azenha
(Portugal)
quarta-feira, junho 30, 2004
terça-feira, junho 29, 2004
Noite de mendigo
Fui seqüestrada nas entranhas
desta noite
por uma espécie de Senhor
da madrugada
Era meu corpo a implorar
por um abrigo
tal qual imensa ilha
desgarrada
Ele insistia em relembrar mistérios
entumecia agredia
(desterrava)
E evocava um outro tipo
de tremor
Algo que fosse o avesso
(uma morada)
Amanhecia
e as plantas já secavam
daquelas gotas tão iguais às
do meu corpo
E a viagem (ante o sol)
se transformava
em mais algum delírio que
desponta
de uma louca (e tão mendiga)
madrugada
Eliana Mora
(Brasil)
segunda-feira, junho 28, 2004
As palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
domingo, junho 27, 2004
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prêmio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
conosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
Natália Correia
sexta-feira, junho 25, 2004
Selecção
Às vezes não sei por que sofremos tanto quando vemos um jogo de futebol. Neste caso, não sei por que o coração salta e a pulsação aumenta com os jogos da selecção nacional. Ontem, ao ver o Portugal-Inglaterra, dei por mim a pensar nesta estranha força, superior a qualquer um de nós. O que está em causa? Será o orgulho nacional? Será isso que nos leva a sofrer com um simples jogo de futebol como se estivesse em causa a vitória das nossas vidas?
Pouco importa. Parabéns Portugal.
Comentários
O livro de reclamações do blog recebeu algumas críticas positivas dos nossos estimados leitores. O sistema antigo de comentários não ia ao encontro das exigências, a Maria recebeu os recados e passou a bola para o lado de cá. Como sempre, fiz aquilo que pude. Temos uma nova caixa de comentários e espero que funcione em pleno. Nestas coisas não se pode hesitar um segundo. Clientes, toca a bombar comentários. A gerência agradece.
PS: Ó Chefe (até parece que estou a dizer «Óóóóóó Maria), será que está bem assim?
quinta-feira, junho 24, 2004
Desejo
Diante de mim
o seu corpo
belo
firme
quase nu
com cheiro
de mar
e de amor.
Diante dele
o meu querer
o meu desejo
intenso
inteiro
integral
indescritível
de tocar
cheirar
sentir
aquele corpo
aquele homem
aquele amigo
desejo.
Stela Fonseca
quarta-feira, junho 23, 2004
Fragmentos
Muros castos e tristes
Cativos de si mesmos
Como criaturas que envelhecem
Sem conhecer a boca
De homens e mulheres.
Muros Escuros, tímidos:
Escorpiões de seda
No acanhado da pedra.
Há alturas soberbas
Danosas, se tocadas.
Como a tua própria boca, amor,
Quando me toca...
Hilda Hilst
terça-feira, junho 22, 2004
Afrodite
Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divagadores,
ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.
Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão
provocante de pudor, de volúpia, de
reserva, de abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?
Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angústias.
Geras o sonho do amor.
Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...
Irene Lisboa
domingo, junho 20, 2004
Dia de futebol
Em dias de futebol, especialmente quando os jogos são decisivos, como é o caso deste Portugal-Espanha, os telejornais são pouco aconselháveis para gente interessada em saber o que se passa no Mundo. Começam e terminam da mesma maneira, com os repórteres a fazer directos de coisa nenhuma, a entrevistar adeptos que se limitam ao óbvio e as respostas banais, que vão ao encontro de perguntas desinteressantes.
Portugal é dos poucos países onde o futebol tem direito a honras principescas, ou seja, abre os telejornais como se fosse um acontecimento determinante. É o reflexo do povo, das vontades, das ideias expressas numa massa humana pouco evoluída e que se deixa dominar pelas emoções fáceis.
PS: Não quero com isto dizer que detesto futebol, bem pelo contrário. É dos espectáculos mais fascinantes à face da Terra, mas quando se cai no exagero chega-se a este estado de pobreza ridícula. Simplesmente, lamentável.
sábado, junho 19, 2004
Sou de vidro
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita
Lídia Jorge
Parolos
Os ingleses voltam a dar o exemplo daquilo que são. Em Coimbra lançaram o pânico, beberam cerveja até caírem de bêbados, meteram-se com as pessoas e fizeram cara feia às autoridades. A violência voltou a ser uma palavra grave quando o desporto aconselha ao convívio entre todos. Dá que pensar. Porque nós, portugueses, é que somos vistos como uns parolos, que não nos sabemos comportar quando vamos ao estrangeiro. Por aquilo que se passou em Coimbra, ainda damos cursos de boas maneiras. Ou não é?
quinta-feira, junho 17, 2004
Poesia Latina
Os mensageiros negros
Há golpes na vida, tão fortes... eu não sei!
Golpes como o ódio de Deus; como se ante eles,
a ressaca de todo o sofrido
se estagna na alma... eu não sei!
São poucos; mas são... abrem poças escuras
no rosto mais feio e no lombo mais forte,
serão talvez os potros de bárbaros atilas;
os mensageiros negros que nos manda a morte.
São as quedas fundas dos cristos da alma,
de alguma fé adorável que o destino blasfema.
Esses golpes sanguinolentos são as crepitações
de algum pão que na porta do forno nos queima.
E o homem... pobre....pobre! Volta os olhos, como
quando por sobre o ombro nos chama uma palmada;
Volta os olhos loucos, todo o vivido
estagna-se, como charco de culpa, no olhar.
Há golpes na vida, tão fortes... eu não sei!
Cesar Vellejo
(Peru, 1899-1936)
[Tradução Héctor Zanetti]
Poesia Latina
A flor do ar
Eu a encontrei por meu destino,
de pé a metade da pradaria,
governadora do que passe,
do que lhe fale e que a veja.
E ela me disse: "Sobe ao monte".
Eu nunca deixo a pradaria,
e me cortas as flores brancas
como neves, duras e delicadas".
Subi à acida montanha,
busquei as flores onde alvejam,
entre as rochas existindo
meio dormidas e despertas.
Quando desci com minha carga,
a encontrei a metade da pradaria.
e fui cubrindo-a frenética
com uma torrente de açucenas
e sem olhar-se a brancura,
ela me disse: "Tu carregas
agora só flores vermelhas.
Eu não posso passar a pradaria".
Subi as penas com o veado
e busquei flores de demência,
as que avermelham e parecem
que de vermelho vivam e morram
Gabriela Mistral
(Chile, 1889-1957)
[Tradução Maria Teresa Almeida Pina]
quarta-feira, junho 16, 2004
Poesia Latina
E que venha a noite...
Presenteia-me o riso de teus olhos
a tênue luz de teu sorriso
o milagre de teu nome
em minha boca.
Presenteia-me a umidade de teus beijos
o tíbio manto de teu abraço
o mar embravecido de teu corpo
junto ao meu.
Presenteia-me o amanhecer de tuas paixões
o espelho frágil de tuas chuvas
tua inocência feita mulher
com minhas carícias.
Presenteia-me teu amor
amor
e que venha a noite...
Carlos Enrique Ungo
(El Salvador - 1963)
[Tradução Maria Teresa Almeida Pina]
terça-feira, junho 15, 2004
Poesia Latina
Palavras a um habitante de Marte
Será verdade que existes sobre o vermelho planeta,
que, como eu, possuis finas mãos prêensíveis,
boca para o riso, coração de poeta,
e uma alma administrada pelos nervos sutis?
Mas no teu mundo, acaso, se erguem as cidades
como sepulcros tristes? As assolou a espada?
Já tudo tem sido dito? Com o teu planeta acrescentas
a vasta harmonia outra taça vazia?
Se fores como um terrestre, que poderia importar-me
que o teu sinal de vida desça a visitar-me?
Busco uma estirpe nova através da altura.
Corpos bonitos, donos do segredo celeste
da alegria achada. Mas se o teu não é este,
se tudo se repete, cala triste criatura!
Alfonsina Storni
[Tradução Héctor Zanetti]
segunda-feira, junho 14, 2004
Eleições
Fala-se muito na esmagadora vitória do PS ou na derrapagem completa da coligação «Força Portugal» nas eleições ao Parlamento Europeu, mas há um dado sobre o qual convém reflectir e funciona como o exemplo perfeito do descontentamento político. Quem ganhou estas eleições foi a abstenção. Com 61,25 por cento. É preciso dizê-lo.
domingo, junho 13, 2004
Vá lá...
Perdemos o primeiro jogo no Euro-2004, mas o patriotismo permaneceu intacto: as bandeiras mantêm-se nas janelas um pouco por todo o país. Vá lá, como diria a Maria Oliveira, «salvou-se a pátria...»
Maria Bonita
Esta noite em Angico
a brisa é calma.
No silêncio farfalham
Minhas anáguas
Como farfalham asas
E no escuro minha carne
Cheira a mato.
Vem meu amor e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como que lava
A casa;
Águas frescas na tarde.
Tuas límpias carícias,
Teus dedos como pássaros
E teu corpo que arde
Como estrelas
No espaço.
Não quero tua candeia,
Só meus sonhos acesos
E eu te direi de nácar
Terciopelo,
Coisas antigas, pelo de
Leoa; voz de cego na feira,
Não quero teu braseiro,
Tua intensa
Cintilação que queima
Meus vestidos
Só quero a tua volta,
Tua presença
Iluminando a noite
Que me cerca
Como uma luz acesa
No postigo.
Que sabes de minha vida
Além da morte
Inquieta que me ronda?
Que sabe desta chita
Destes panos
Que envolvem minha nudez
Como uma chama?
São teu olhos
Carvões que me devoram,
São teus beijos
Fosforescências de mel,
Travo forte das frutas.
Teus dedos como setas
Apontam meu destino:
Meu caminho,
Na planta de teus pés;
Meu horizonte,
No risco de tuas mãos
E meus cabelos
Esparsos sobre a relva
Em que me habitas.
Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos vidros
Com que miras
A mira do mosquete.
Sou teu sabre,
Facão com que degolas.
Sou o gosto de sal,
Veneno que espalharam
No prato.
Sou a colher de prata
Azinhavrada. Sou teu laço
Teu lenço
No pescoço.
Sou teu chapéu de couro
Constelado
Com estrelas de prata
Sua a ponta
Do teu punhal buscando
O peito dos macacos.
Sou teu braço,
A cartucheira cruzada
Sobre o peito,
Sou teu leito
De angico e alecrim
Sou a almofada
Em que deitas a face,
O cheiro agreste
Dos homens que mataste.
sou a bainha
E a lâmina é meu resgate.
Sou tua fera. Sussuarana
No escuro - bote e salto.
Jaguatirica acesa nestes altos
Mundéus de teu alarme. Sou o parto
Da morte que te espreita.
Sou teu guia
Tua estrela, teu rastro, tua corja.
Sou tua mãe que chora,
Sou tua filha. Teu cachorro fiel,
Tua égua parida.
Sou a roseta na carne,
O lombo nas esporas.
Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça. Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.
Areia no sapato.
Sou a rede
Aberta como um fruto,
Sou soluço. Fome escura
De poço. Sou a caça
Abatida. Lebre e gato,
Coisas quentes ao tato.
Vem, meu dono, meu sócio,
Meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
Desata a cartrucheira,
A noite é farta
Como besta no cio,
A noite é vasta.
Vem, devagar
E habita meu silêncio
Como se habita
Um claustro.
Lâminas. Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra.
Desata a cartucheira,
Teu campo de batalha
Sou eu.
Por um momento
Esquece o que te mata
- fúria e falta -
E enquanto a noite é calma
Vem e apaga
Na pele do meu peito
Esta fome sem data.
Myrian Fraga
sexta-feira, junho 11, 2004
Teste ao patriotismo
Já aqui se escreveu sobre as bandeiras portuguesas presas nas varandas e colocadas nos vidros das janelas, na esperança de que o Euro-2004 seja a vitória triunfal que tanto desejamos. É uma atitude de grande patriotismo, é facto. Mas uma reflexão mais atenta ao fenómeno, que corre o país de Norte a Sul, num gesto de nobreza e de grande sentimento lusitano, leva-me a este ponto: vamos ver se à primeira derrota as bandeiras não desaparecem das ruas, numa simples acção de mau perder. Agora é que vamos conhecer os verdadeiros patriotas.
quinta-feira, junho 10, 2004
[citare]
"Todos precisam de recordações.
Elas afastam o horror da insignificância."
(Saul Bellow) escritor e novelista norte-americano. Nasceu em 10 de junho de 1915, Lachine, Québec, tipo humano Gêmeos, signo Ar, regência Mercúrio, pedra Ágata e flor Flor-de-maracujá. Com 89 anos e 1 dia de idade. Agraciado com o Prêmio Nobel 1976.
De sua extensa obra narrativa sobre a condição dos judeus destacam-se As aventuras de Augie March, 1953, Carpe Diem, 1956, O rei da chuva, 1959, Herzog, 1964, O legado de Humboldt, 1975 e São mais os que morrem de desamor, 1987. Em 1994 publicou uma coleção de ensaios intitulada Soma e segue.
[Carpe Diem! - Charles Evaldo Boller - Brasil]
ARRE, que tanto é muito pouco!
ARRE, que tanto é muito pouco!
Arre, que tanta besta é muito pouca gente!
Arre, que o Portugal que se vê é só isto!
Deixem ver o Portugal que não deixam ver!
Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!
Ponto.
Agora começa o Manifesto:
Arre!
Arre!
Oiçam bem:
ARRRRRE!
Álvaro de Campos (1890-?)
quarta-feira, junho 09, 2004
Patriotismo
Um fenómeno curioso invade algumas ruas da cidade do Porto e dá um toque colorido ao burgo. O povo expressa o seu patriotismo da forma mais nobre possível: bandeiras portuguesas foram colocadas nas varandas, nas janelas, nota-se um certo respirar português, um sentimento próprio, de orgulho e de vaidade em sermos aquilo que somos. É anormal. Por norma, repudiámos e criticámos tudo o que aqui se diz, tudo o que aqui se faz. Infelizmente, este patriotismo súbito tem a explicação óbvia do futebol. A bola a saltar, o Euro-2004 à porta e o desejo ardente em sermos campeões da Europa. É uma pena que seja assim.
terça-feira, junho 08, 2004
Ponto de orvalho
Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.
António Gedeão
segunda-feira, junho 07, 2004
Esta Velha
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!
Álvaro de Campos
domingo, junho 06, 2004
Sessenta anos depois
Hoje é um dia para a história. Faz 60 anos que a 2.ª Guerra Mundial passou a ter os dias contados, quando as tropas aliadas invadiram o território francês através das calmas praias da Normandia. É um dos maiores acontecimentos - e também uma das maiores chacinas - da história da humanidade: num só dia morreram milhares de soldados com o objectivo de libertar a Europa do pesadelo nazi.
Seis décadas depois, as críticas aos americanos inundam o panorama da política internacional. A estratégia de força de Bush deixou as suas marcas no Médio Oriente, onde o conflito no Iraque é o exemplo perfeito de uma tendência dominadora, arrogante e violenta em relação a uma invasão que começou pela ideia de que as armas de destruição maciça (onde estavam elas?) eram um perigo para a humanidade.
Mas uma coisa é certa: se não fossem os americanos, a 2.ª Guerra Mundial teria durado bem mais tempo do que o previsto - na pior das hipóteses, estaríamos sob o domínio alemão. Se não fossem os soldados americanos, o famoso dia D nunca teria existido. Hoje, 6 de Junho de 2004, seria uma data banal. É preciso reconhecê-lo.
sábado, junho 05, 2004
Reconhecimento à Loucucura
Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos
[individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar
José de Almada Negreiros
sexta-feira, junho 04, 2004
ODE À INCOMPREENSÃO
De todas estas palavras não ficará, bem sei,
um eco para depois da morte
que as disse vagarosamente pela minha boca.
Tudo quanto sonhei, quanto pensei, sofri,
ou nem sonhei ou nem pensei
ou apenas sofri de não ter sofrido tanto
como aterradamente esperava –
nenhum eco haverá de outras canções
não ditas, guardadas nos corações
alheios, ecoando abscônditas ao sopro do poeta.
Não por mim. Por tudo o que, para ecoar-se,
não encontrou eco. Por tudo o que,
para ecoar, ficou silencioso, imóvel –
-- isso me dói como de ausência a música
não tocada, não ouvida, o ritmo suspenso,
eminente, destinado, isso me dói
dolorosamente, amargamente, na distância
do saber tão claro, da visão tão lúcida,
que para longe afasta o compassado ardor
das vibrações do sangue pelos corpos próximos.
Tão longe, meu amor, te quis da minha imperfeição,
da minha crueldade, desta miséria de ser por intervalos
a imensa altura para que me arrebatas
-- meu palpitar de imagem à beira da alegria,
meu reflexo nas águas tranquilas da liberdade imaginada --,
tão longe, que já não meus erros regressassem
como verdade envenenando o dia a dia alheio.
Tão longe, meu amor, tão longe,
quem de tão longe alguma vez regressa?!
E quem, ó minha imagem, foi contigo?
(De mim a ti, de ti a mim,
quem de tão longe alguma vez regressa?)
Jorge de Sena
4/10/49
quinta-feira, junho 03, 2004
Estratégias perigosas
O preço da gasolina continua a disparar em flecha e algumas empresas do ramo petrolífero aproveitam-se da situação para tentar ludibriar os consumidores. Há estratégias perigosas nas nossas estradas como prova o exemplo que a seguir relato: certas gasolineiras não colocam em sítio visível, como mandam as regras, a tabela de preços. Objectivo óbvio. Muitos automobilistas são apanhados nesta teia e caem que nem patinhos por causa da necessidade extrema de terem de encher o depósito. Fica o alerta.
quarta-feira, junho 02, 2004
Provérbio Chinês
Os nossos desejos são como crianças pequenas: quanto mais lhes cedemos, mais exigentes se tornam.
Asa no espaço
Asa no espaço, vai, pensamento!
Na noite azul, minha alma flutua!
Quero voar nos braços do vento,
Quero vogar nos braços da Lua!
Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta...
Por oceanos de nevoeiro
corre o impossível, de ponta a ponta.
Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.
Castelos fluídos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
... Asa, mais alto, mais alto, mais!
Fernanda de Castro
terça-feira, junho 01, 2004
A carícia perdida
Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?
Alfonsina Storni
[Tradução de Carlos Seabra]