Lembranças, 2
Sempre soube o nome das limas de cor. Lembro-me das murças, das grossas e das meias-canas. Conheço os formatos e as medidas de cada uma. Sei para que servem. O tempo passa, mas as lembranças permanecem dentro de mim como um tesouro escondido num baú. Na oficina o cheiro a óleo era intenso. O tanque é preto, o chão é preto, as paredes são pretas e os panos estão pretos, mas a parede do forno é sempre laranja. Recordo-me daquelas mãos firmes a amassar o barro, quando era preciso erguer a parede do forno. A colher na mão, a perícia de quem conhece todos os segredos, a língua de fora, o cigarro na boca e os óculos grossos encostados ao nariz. Os movimentos sempre doces, penetrantes, o meu olhar de criança atenta e com medo de sujar a roupa, com medo de me encostar ao cepo onde as limas eram prendidas em correntes de borracha. Quieto observava tudo. E interrogava-me de como era branco o tanque do tempero e de como eram laranjas as limas de metal a sair do forno, a escaldar, em direcção à água escura onde arrefeciam e libertavam vapores de aflição. Lembro-me da tenaz grande, do pau longo, como se fosse um remo, para raspar as limas e dos movimentos circulares do meu padrinho para tirar todas as réstias de ferrugem. Sei que à entrada da oficina havia uma rampa, ao longe o armário verde escondia jornais novos, fios amarelos e garrafas de óleo cortadas a meio. Mas o que me entusiasmava era a parte de picar as limas. Quando ele prendia o metal no cepo de madeira, com as tais correntes de borracha em direcção aos pés, pegava em cinzéis de bico fino, suspendia os óculos de massa grossa no cimo do nariz e desenhava ranhura por ranhura, fissura por fissura, num martelar doce, suave, como se fosse o instrumento de uma orquestra. Adorava aquilo, não sei porquê. Continuava imóvel, em silêncio, a olhar para as mãos grossas, atento aos movimentos, ao cigarro a arder no cinzeiro e fintava, a espaços, aquela imagem quando passava os olhos através da janela e via as pedras de carvão apinhadas no quintal; o cão a ladrar, pedaços de lenha acumulados e o meu olhar outra vez cravado nas mãos grossas, na lima de metal presa às correntes de borracha e no toque do martelo, lento, incisivo e harmonioso. De vez em quando, o meu padrinho olhava para mim. Mas eu estava ali e não estava; estava dentro da oficina e não estava. Lembro-me da minha bata aos quadradinhos azuis e brancos, feita pela minha mãe, e da ternura de como me colocava as mãos pretas na cara só para me afugentar o medo, o medo de me sujar.
Picar limas, transformar as limas gastas em limas novas, aí está mais uma profissão que morreu com o tempo. Ele também já partiu...
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