segunda-feira, novembro 01, 2004

Crónica de Um Caso Vulgar

A QUEDA
II

Ela não era louca, nem caduca, nem sequer coxa. Ela mesma escolheu o par de botas pretas, em pele macia, cano alto, salto fino, e colocou um pequeno seixo amendoado, colhido na praia, no calcanhar da bota do pé direito, para que a magoasse com o andar, conseguindo assim coxear com verdade. A bengala, encastoada em prata numa minuciosa cabeça de pássaro, foi-lhe emprestada para complemento do quadro. Manuseava-a com perícia, obtendo o efeito desejado.

O casarão sim, esse era verdadeiro, estava em ruínas e nunca pertencera à sua família. Cenários. Muitos cenários. A sua vida era um vasto conjunto de palcos com diversos cenários. Tantos, quantos os que quisesse arquitectar. Uns muito reais, outros mais reais ainda.

Mal conhecia Adelaide e Carlos viria, novamente, a ser seu marido e também seu irmão.

Gostava de óperas mas sem paranóias. Passou a ter outra inclinação no campo da música. A magia dos instrumentos de sopro. A flauta, o saxofone, o clarinete, eram a sua actual eleição. Sem a música não conseguia alienar-se da corrente veloz dos seus incontroláveis pensamentos. Acalmada por estes sons, transportava-se onde queria, arrastando consigo todas as figuras das suas construções do espírito.
Mulher inconstante, percorria os seus mil e um mundos, repletos de personagens vivas ou mortas, com quem cumpria as suas quimeras, esfumando-se em comunhão com elas. Uma espécie de clausura imposta. Um casulo protector, melhor dizendo.
Fizera dos seus dias uma fábula de cores pálidas, povoada dos abismos e monólogos que só ela – quase só ela – conhecia. O seu todo tornou-se estanque. Demasiado estanque, para quem possuia uma expansividade tão marcante quanto a dela. Acontecia-lhe banhar-se em lágrimas para lhe abrandar o mal-estar acumulado há muito. E era em silêncio que o fazia e sem ninguém por perto. O choro era para ela um acto de grande intimidade, não o partilhando com ninguém. Assustava-se com a sua expressão de criança perdida, olhos tristes como a morte e reconhecia-se, repetidamente, nos seus recuados choros de menina criança, irmãmente silenciosos e íntimos.

Exercícios. Muitos exercícios. Sim, a sua vida era um árduo e permanente trabalho de buscas pela conquista e domínio do seu verdadeiro mundo.

Mariana era uma mulher para quem muitos olhavam, poucos viam, ainda menos entendiam e ninguém conhecia.

Que natureza extravagante era, afinal, a daquela mulher...?

(segue)


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