terça-feira, outubro 26, 2004

Crónica de Um Caso Vulgar

A QUEDA

Mulher já bem na casa dos quarenta – aristocrata em decadência - vivia na mansão herdada de seus pais, casarão que denunciava o crepúsculo de períodos áureos.

Sem sentimentos de vergonha, não abdicava do uso quotidiano das valiosas jóias de família, das quais nunca se desfizera, apesar da constante pressão que o marido exercia sobre ela, atormentando-a sem piedade.

“Não pagas o ordenado à Adelaide há mais de oito meses. Não tarda, ela vai-se embora. Ficas tu a fazer o serviço da casa?"

"Estás caduca, mulher! És uma aleijada e estás a ficar louca!
Sempre a ouvir as mesmas óperas, sempre fechada em casa, sempre a espiar os meus mais pequenos passos. Não sei quem te pode aturar… Um dia isto muda, e então quero ver o que vai acontecer…”


Com menos quinze anos do que ela, de condição social inferior, não tinha profissão ou rendimentos pessoais. Um homem em total dependência económica, o seu marido.
Firmou-se, ele, naquele casamento por conveniência, depois do irremediável acidente de caça que vitimara aquela mulher, de tão alta estirpe quanto alta ingenuidade.
Os dois tinham o fervor da caça. Tinha sido a caça o primeiro vínculo entre eles e o melhor pretexto para Carlos fisgar Mariana.

De um romantismo patético e temperamental, permitiu-se ao fascínio que ele exercia sobre ela, usando da sua irresistível beleza. Era o homem mais belo que ela conhecera e de uma arte sedutora estonteante. Foi-se deixando amarrar, amarrar, até à rendição total. Nem do seu carácter rude, disfarçado com astúcia, ela suspeitou, algum dia.

A rígida educação aplicada a Mariana, não admitia a ideia de um divórcio.
A sociedade é implacável! Este conceito que a constrangia perante a hipótese de um desquite, amordaçava-a para o mundo. Essa era a razão da sua determinação em suportar até ao limite, aquele nó cego e labiríntico.

Aparentava ignorar o evidente caos financeiro que a cercava, agravado com o passar dos dias, não abdicando das mordomias básicas a que fora habituada. Despedir a criada, nunca! E por isso ía mantendo Adelaide naquela casa.

Enclausurava-se no seu quarto por longos períodos do dia, observando pela janela que dava sobre o alpendre da larga alameda de acesso à entrada principal, ao descarado e injurioso caso de adultério entre o marido e a criada.

Desesperavam-na aquelas cenas de jogos de provocação reles, que revelavam um enorme despudor, e lhe causavam uma imensa repugnância, já sem sentir qualquer ponta de ciúme.

“Um dia isto muda… quero ver o que te vai acontecer”, repetia Carlos sucessivas vezes, dominando-a pelo medo que sentia crescer dentro dela.

O mesmo pesadelo ensombrava o seu sono todas as noites.
A visão do marido nu - que corpo belo, aquele - enrolado com a criada meio despida, deitados sobre o arca de cânfora ao fundo do corredor, em práticas de sexo que considerava uma obscenidade. Carlos e Adelaide tinham relações sexuais, sob o seu próprio olhar.

Às refeições, cada um sentado às cabeceiras opostas da mesa de doze lugares, Mariana não conseguia conter a exaltação de uma raiva crescente, quando Adelaide, fardada a preceito por exigência da patroa, se roçava com lascívia em Carlos, ao servir-lhe as duas conchas de sopa, em prato de porcelana francesa.

Dissimulada, Adelaide fazia uma cara matreira e desculpava-se perante a patroa da sua falsa distracção, usando a sua voz mais cínica num comentário sempre repetido.
“Não foi de propósito, esta concha de prata é tão pesada... escorrega-me sempre das mãos…”
Carlos torcia-se, então, de riso insolente, e Mariana abandonava a sala de jantar em angústia sufocante, fechando-se à chave no salão de música, aonde ficava a ouvir óperas em alto som, até o esgotamento daquele aperto a vencer.

Durante os seus solitários passeios diários pela quinta, cada vez mais em descalabro, não deixava nunca de fazer o seu exercício de prática de tiro ao alvo, num casinhoto a cair de podre nos fundos do jardim, outrora repleto de buchos a emoldurar canteiros cobertos das mais diversas e exóticas flores.

Mariana era, ainda, uma atiradora de primeira, com uma pontaria certeira e infalível. Talvez mesmo... uma mulher de pontaria perigosa...

(segue)

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