sexta-feira, novembro 21, 2003

A ti, Sónia:

«Apareceu uma camioneta carregada de gaiolas a espantar cabritos na poeirada do horizonte, e o alvoroço dos pássaros foi um jorro de água fresca na modorra dominical de San Miguel del Desierto. Ao volante vinha um corpulento lavrador holandês de pele sulcada pelas intempéries e uns bigodes cor de esquilo que teria herdado de algum bisavô. O seu filho Ulises, que viajava no outro banco, era um adolescente dourado, de olhos marítimos e solitários, e com a identidade de um anjo furtivo. A atenção do holandês foi atraída por uma tenda de campanha diante da qual esperavam vez todos os soldados da guarnição local. Estavam sentados no chão, bebendo de uma mesma garrafa que passavam de boca em boca, e tinham ramos de amendoeira na cabeça como se estivessem emboscados para um combate. O holandês perguntou na sua língua:
- Que raio é que venderão aqui?
- Uma mulher – respondeu-lhe o filho com toda a naturalidade. – Chama-se Eréndira.
- Como o sabes?
- Toda a gente sabe isso no deserto – respondeu Ulises. (…)»

[Gabriel García Márquez, in A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da sua Avó Desalmada. Quetzal Editores, p. 96]

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