Crónica de Um Caso Vulgar
A QUEDA
III
Com o passar dos dias o pânico aumentava em espiral com as diárias ameaças de que uma revolução social se previa acontecesse, o que a levaria à total ruína. Um monstruoso e ameaçador fantasma pairava sob a sua cabeça, agora sim, a dar evidentes sinais de destempero.
Uma cilada sem fundamento, queria admitir, apesar da constante e aterradora pressão que aqueles dois adversários, mais inimigos do que adversários, exerciam sobre ela num processo de bárbara aniquilação.
E ela a sustentar há tantos anos aqueles dois tratantes. Que ironia do destino…
Na incerteza daquela certeza, a sua mente disparava na congeminação de planos de evasão a tamanha crueldade.
Só um entre todos os planos que cismara lhe traria a sua redenção e fuga, e já decidira qual seria.
Cada vez mais enclausurada em si e no seu quarto, não conseguia evadir-se dos muitos demónios que a cercavam e que a contaminavam numa consumição em lume brando.
Então vinha-lhe aquele gesto repetido e descontrolado. Abria as sucessivas gavetas da cómoda retirando, à toa, tudo o que nelas encontrava, espalhando, peça a peça, pelo chão do quarto o que pegara e que espezinhava com fúria, à procura, sempre à procura do seu exacto milagre.
Mas onde teria ela guardo aquilo? Aquilo era o preço da sua vida.
Sem aquilo, não levaria a bom termo o seu propósito
Que desordem mental se apoderava daquele espírito cada vez mais débil.
Não, não era na gaveta pequena por entre os lenços de pescoço em seda que escondera o seu milagre.
A criada que arrumasse tudo no dia seguinte. Mesmo a dever-lhe ordenados, continuava a ser a sua criada.
Através da campainha eléctrica que soava na cozinha, chamava Adelaide para lhe servir o chá da tarde, no quarto.
Um dia será o último chá.
No topo da escadaria, observava Adelaide, meio desgrenhada a compor o avental e o cabelo, enquanto subia, risonha e vagarosa, transportando a grande bandeja de prata maciça, a chávena e o bule de chá, a escaldar. Devia ter saído dos braços do seu marido breves instantes antes. Que rameira!
Com aquela expressão de contentamento, só podia ter estado a rebolar-se com o seu marido, ou talvez a experimentar os seus fatos mais chiques, arrumados no guarda-fato do outro quarto, que tanto inveja lhe causavam.
Era seu hábito fazê-lo, tal como era hábito de Mariana, quando se sentia em desconfiança, investir pela cozinha, no seu trôpego andar e arremessar a bengala às pernas da criada, que a olhava com aparente receio e maior menosprezo, conhecendo a sua agilidade à escapatória daquelas caricatas situações.
Num dos extremos da enorme cozinha via, ou julgava ver, Carlos igualmente a desdenhar o ridículo da cena.
Acabava por cair desamparada no chão frio de mármore corroído, sem nenhum deles lhe estender uma mão.
Mariana exigia que o chá lhe fosse servido sempre a escaldar. A ferver, a ferver.
“Eles estão a fazer tudo para me roubar que me resta.
Que maldição!”.
Até a criada entrar no seu quarto, aquietava-se ligeiramente e decidia; ainda não será hoje. Ainda não será hoje o dia do ajuste de contas.
Mariana possuía uma enorme capacidade de resistência ao sofrimento, muito para além do que imaginavam ser possível, e faria tudo para dela tirar proveito no seu inesperado acto de vingança que não estaria longe de realizar.
(segue)
<< Home