sábado, novembro 27, 2004

Um grito

O que ontem era uma pequena floresta é hoje um espaço aberto com prédios a nascer como cogumelos. Há dias fiquei ali perdido por entre o betão que se erguia à minha frente e um punhado de recordações de piqueniques em dias de calor: os eucaliptos libertavam um aroma brando e a folhagem das árvores era uma espécie de zumbido, como se as abelhas povoassem o ar e fossem parte de um quadro pintado por alguém. Alguém que não sei o nome. Que desconheço a idade. Um simples alguém vindo do nada.

Os carreiros de terra batida funcionavam como uma encruzilhada, onde o musgo penetrava as pedras no Inverno e servia para embelezar as cascatas de S. João. E os bugalhos salpicavam o caminho, a caruma acumulava-se por baixo das árvores carcomidas pela passagem dos anos. Havia um vento de leste em todas as visitas, havia o tal aroma a eucalipto a entrar pelo corpo e a tocar ao de leve na alma. Os muros antigos funcionavam como lendas vivas do passado e as crianças das barracas degradadas cortavam o silêncio que só a natureza interpreta.

Foram dez minutos a ver os homens a colocar o betão nas calhas de madeira à medida que as máquinas avançavam nos terrenos ao lado para nivelar a terra. Aquelas recordações vaguearam-me a mente como fantasmas em noites longas. De repente, tudo desapareceu. As árvores, os caminhos, as tais pedras cinzentas, os eucaliptos de troncos descascados, os bugalhos que eram berlindes e a caruma que funcionava como um tapete. E o cheiro brando das folhas transformou-se neste vazio bem típico das cidades, onde nada cheira a nada, onde tudo cheira a nada, onde a palavra nada é mais forte do que todas as outras palavras.

Tudo desapareceu. Aquela pequena floresta é agora um espaço aberto e os pilares dos prédios parecem grades aos quadradinhos. Mais ao lado nasceu uma escola e só três ou quatro árvores sobreviveram à mão forte e indisciplinada do homem. Mais tarde haverá ali uma rua, atrás mais um prédio, à frente um pequeno ringue para as crianças passarem o tempo. Ao longe, aparecerá um carro, de manhã as pessoas sairão dos prédios com a cara fechada, sempre em silêncio, em direcção ao local de trabalho e à noite farão o mesmo caminho como animais amestrados. Passo por ali – aquele ali é perto da minha casa – e o meu coração esfarrapa-se. Todas as vezes.

(Entretanto chegaste...

..., agora foste embora...)

Um dia mais tarde, vou ter um filho nos braços a olhar para os prédios. E vou contar-lhe como o pai percorria aquele caminho de pedras, pensando que os bugalhos eram berlindes ou bolas de futebol; como o pai sentia o cheiro a eucalipto vindo do alto dos céus, acreditando que aquele cheiro fosse a mais ingénua das normalidades; como o pai passava por entre as árvores pela mão da avó e sentia na cara o calor espevitado das longas tardes de Verão; como o pai registava as vozes e conhecia o serpentear do vento como se fosse um animal a desbravar o mato.

Um dia mais tarde, vou ter um filho nos braços a olhar para os prédios e os carros vão chegar, devagar, vindos do longe, onde há mais prédios, onde há mais gente e ele não se vai acreditar que ali – logo ali, meu Deus, logo ali – havia uma pequena floresta de cheiros e de encantos que o Homem apagou como quem esquece a vida. E vou contar-lhe como os avós (os meus pais) tiravam o musgo das pedras maiores e enfeitavam o presépio no Natal; como os avós também se serviam do musgo para colocar cascata de S. João; como o pai observava aquele ritual e registava os gestos como se fosse uma prenda dos céus.

Um dia mais tarde, vou ter um filho nos braços a olhar para os prédios e ele vai perguntar-me o que é um eucalipto, o que são bugalhos, de que cor é a caruma, se o musgo é azul, se as folhas das árvores são roxas, por que o vento soprava mais forte ao final da tarde, por que as pedras eram cinzentas, sempre cinzentas, por que aquela terra era mais negra do que o xaile das velhas. Um dia mais tarde, vou ter um filho nos braços a olhar para os prédios e vou senti-lo nas minhas mãos como se fossem os gestos dos meus pais a fazerem a árvore de Natal. Sempre lentos, calmos, doces e cheios de ternura.

Agora, vou dormir. Um beijo, querida.

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