domingo, janeiro 23, 2005

Crónica de Um Caso Vulgar

A QUEDA
IV


Saturada de si, esgotada por tudo e por todos, pensou desistir da sua vingança, mas não o fez. Mariana não queria baixar os braços em definitivo, ainda.

Malditos pesadelos aqueles que a perseguiam com monstruosa insistência e a deixavam prostrada até à exaustão.
Adormeceu, a meio daquela tarde, sobre a cama meio desfeita, sem se cobrir com roupa alguma e foi deixando arrefecer o seu corpo até gelar.

Encerrada num avião, sobrevoava acompanhada dos seus fantasmas, um gigantesco vale, fundo como a morte, em forma de funil que estreitava até se estrangular.
Muito verdejante de plantações quase rasas fixadas em sulcos geometricamente delineados, sulcos de terra fértil e bem tratada, avistou uma parcela de solo, quase imperceptível a início, árida e gretada, com torrões de terra soltos de aparência incandescente, que se destacavam ameaçadoramente. Que faixa de pátria seria aquela dentro de um vale tão prolífero e bem cuidado?

Onde se dirigia o avião em que a encarceraram sem que ela desse conta, interrogou-se com inquietude. Olhou em redor e alguém lhe disse: “o teu destino é Munique. Estás a ser premiada com uma viagem a Munique”.
Premiada? Munique? Porquê Munique? Não quero…

Aquele cone fundo, talvez plantado de videiras, que prendia o seu olhar sem que o conseguisse despregar, grudavam-lhe a cara à pequena janela do aparelho e tudo lhe parecia um monstruoso espectro que considerou ser um mau presságio. Um abanão forte a despertou enquanto, em estado de angústia, continuava a dizer para consigo: “não quero ir para Munique. Quero ficar aqui suspensa até à eternidade.”

Sentia-se doente, sem forças para combates e a ser levada para um destino que não escolhera e se recusava aceitar.

Mudaria então o rumo àquela história e escolheria o seu próprio rumo, o seu fim… o seu fim, se bem lhe aprouvesse.
Com agitação sentou-se na cama, ainda estremunhada pela estranheza daquela viagem, que não conseguia decifrar.

O universo de Mariana passara a ser invadido por sonhos indesejáveis que destruíam os seus próprios sonhos, cada vez mais escassos.

É no fundo do vale que está o que tanto procuro. Como lá chegar?

Cambaleante saiu da cama e dirigiu-se ao oratório, encostado à parede bem perto de si, construído em madeira de pau-santo, repleto de carcomidas imagens de santos, velas de estearina mal queimadas com gotas de cera dispersas, aqui e além, e olhou hipnotizada o rosto de Cristo crucificado na enorme cruz de prata colocada ao centro.

A jarra, a jarra de rosas secas pelo tempo, pétalas caídas sobre o linho bordado à mão que cobria a base, descobriria o seu tesouro. O fundo falso, sob a custódia da imagem de Cristo, do qual se esquecera…

(segue)

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